Bonner não é mocinho
Ontem, no Jornal Nacional, William Bonner, apresentador e editor-chefe do noticiário mais visto da Rede Globo, fez um desabafo.
– Estamos esgrimando contra loucos e irresponsáveis. Gente que espalha mentiras em grupos de Whatsapp, que fala crendices, as mentiras mais impressionantes. E gente que faz isso investida de cargo público.
Era o momento em que o repórter Alan Severiano entraria ao vivo, direto de São Paulo, para dar os números mais recentes da pandemia, exatamente a notícia de que o Brasil batia mais um recorde negativo por conta do aumento astronômico da média móvel de contágio.
Pois bem.
Bonner é uma das vozes mais poderosas do país. Sua capacidade de influenciar é notória e ele – e seus chefes – sabem disso. Visão de mundo representada pela Globo e seus porta-vozes sofreu um revés com a ascensão de políticos como trump e bolsonaro. Eles vieram representar uma nova-velha massa de conservadores e descontentes, reprimidos pelo sistema, o mesmo sistema neoliberal que Bonner e Globo defendem com vontade. Só que esses apoiadores dos presidentes americano e brasileiro não têm o protagonismo social e econômico que os neoliberais do “topo da cadeia” têm. É gente que vive de aposentadoria, que propaga teorias da conspiração, que enxerga a vida como se fosse uma cena deletada de “Comando Para Matar” ou que, simplesmente, não tem a menor condição de formular um raciocínio baseado na lógica. E, além deles, tem muita gente má no meio desses apoiadores. Basicamente, são pessoas que acreditam na violência como única resposta aos problemas da sociedade. E que exalta essa suposta medida solitária como sendo verdade absoluta.
Também são pessoas que têm a religião como elemento decisivo em suas vidas. São devotos de fé mas naufragam em contradições que opõem a ajuda ao próximo e ao mais necessitado com esta visão violenta do mundo. Como assistir a alguém mais fraco e que precisa de ajuda se estas pessoas repudiam pobres, negros, idosos, índios, povo LGBTQ+ e outras minorias/maiorias da população? A contradição habita suas vidas, segue seus passos. Cultuam Jesus Cristo mas defendem o acesso irrestrito a armas de fogo. Enfim…
Voltando a Bonner e seu apelo. Não é a primeira vez que o editor-chefe do JN assume este papel de porta-voz de um Brasil indignado com os absurdos do atual governo. Mas, é preciso lembrar de sua atitude e de sua emissora em 2018. Em 2016. Em 2015. Em 2014. É preciso, necessário, imperativo lembrar que este grupo midiático apoiou a candidatura bolsonaro, apoiou as prisões e investigações levianas e sem provas, endossou mentiras e factóides sobre os governos anteriores ao de temer e que, mais do que tudo, emprestou sua enorme influência para lobotomizar grande parte da população brasileira, desviando sua atenção do real problema, ou seja, o encaminhamento do país para uma esfera de submissão ao sistema neoliberal mundial.
Não é teoria da conspiração, é simples geopolítica. Não interessa a ninguém no Ocidente um Brasil autônomo e esclarecido, com ensino público pujante e independência em relação aos grandes centros. Não interessa um país como o nosso, com reservas de energia que duram mais de um século, vinculadas ao ensino e à saúde. Não interessa um país deste tamanho com um mercado interno forte o bastante para liberá-lo da submissão. Os governos pós-2016 reverteram a relativa autonomia que o país havia alcançado desde o início da década de 2000 e o vincularam à lógica neoliberal mais opressora. O resultado está no nosso cotidiano: aumento de preços, escassez de bens, desvalorização da moeda, inflação, desemprego. São os mesmos sintomas de sempre, que atestam a existência de um país injusto, cada vez mais desigual, na contramão da modernidade.
Bonner e sua turma, ao não permitirem entrevistas de Fernando Haddad em meio à convalescença de bolsonaro na época da campanha presidencial, ao não noticiar as sucessivas farsas judiciárias sobre condenações do ex-presidente Lula, ao apagar da memória a ex-presidente Dilma e enaltecer os feitos de seu virtual candidado em 2022, joão dória, está do lado do sistema. Como sempre. O que existe entre ela e os atuais ocupantes do governo é uma divisão tênue, que será logo sanada quando se opuser um candidato conservador – de qualquer partido – a um candidato de esquerda.
Bonner não hesitaria em difamar e colocar seu poder de influência a serviço de uma causa que não é a nossa, dos mais ferrados. Ele está supostamente perplexo diante das mortes por covid-19, não? Será que ele já fez o exercício mental de imaginar como um governo progressista e preocupado com a população lidaria com a doença?
O editor-chefe do JN, seus chefes e seus comandados viabilizaram o atual governo. Cruzaram os braços para dar poder a um politico sabidamente incapaz, truculento, mau, burro, violento, defensor da tortura e vinculado ao que há de pior na sociedade brasileira.
Sem Globo e Bonner, não haveria bolsonaro presidente. É bem simples.
William Bonner perde o controle (com razão) com negacionistas da pandemia #JN pic.twitter.com/WH9tdUHWrx
— #ETC ₂₀₂1 (@epictimechat) January 14, 2021
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.