Anitta e a negação do passado brasileiro no Grammy

 

 

 

Quem está nas redes sociais viu a indignação pela derrota de Anitta na premiação do Grammy, domingo à noite. A cantora carioca foi preterida para levar a estatueta de Revelação de 2022 por Samara Joy, jovem artista americana de Nova York, com trabalho voltado para o jazz. Além das duas, os indicados eram Måneskin, Omar Apollo, Domi & JD Beck, Latto, Muni Long, Tobe Nwigwe, Molly Tuttle e Wet Leg.

 

 

O que realmente chamou a atenção foi a reação enfurecida dos fãs de Anitta, após sua derrota. Inconformados, eles chegaram até a ofender Samara Joy em seu perfil no Twitter, alegando que a carioca fora injustiçada e que Joy não tinha talento e demais demonstrações de chororô explícito. Além disso, foi erguida uma campanha informal por assessorias e veículos de comunicação que deixava de lado as presenças brasileiras no Grammy ao longo do tempo, dando a impressão de que Anitta seria a primeira artista nacional a ser reconhecida internacionalmente. A partir disso, faturar o prêmio de Revelação, daria a ela uma força ainda maior do que já tem.

 

 

Sabemos bem que Anitta investe numa carreira internacional há tempos e que, com méritos, vem colhendo os frutos disso recentemente. Os números impressionantes no Spotify, passando por participações em talk shows de prestígio nos Estados Unidos (como o de Jimmy Fallon, por exemplo) e aparições em premiações da MTV, deram a ela grande visibilidade, porém, é preciso pisar no freio e ponderar sobre o que já foi feito antes. O Brasil já esteve aqui, com fortíssima presença, no início dos anos 1960 e, ao longo do tempo, a música feita aqui teve visibilidade maior que a produção de Anitta. Aliás, essa última frase deveria não ser necessária se houvesse um pouco mais de noção.

 

 

Na virada dos anos 1950/60, o violonista clássico Laurindo Almeida era uma espécie de bicho papão do Grammy. Ele vencendo três prêmios entre 1959 e 1961, sempre na área reservada à música erudita. Quatro anos depois, foi a vez do grande movimento musical que colocou a música brasileira no mapa mundi, a saber, a Bossa Nova. O som gestado a partir da mistura de samba e jazz, urdido por uma classe média carioca surfando na onda do Brasil do futuro, que nunca chegou a existir, foi, de fato, um fenômeno mundial. A demanda por artistas vinculados à Bossa foi enorme, levando Tom Jobim, João Gilberto, Astrud Gilberto e vários outros, para um dos berços do jazz, Nova York. Em pouco tempo, mais precisamente, em 1964, Tom estreou em disco como artista solo com “The Composer Of Desafinado Plays”, lançado pela prestigiosa gravadora americana Verve. No ano seguinte, João Gilberto veio com “Getz/Gilberto”, gravado em parceria com o saxofonista americano Stan Getz. Além disso, Astrud, sua mulher na época, registrou uma versão emblemática de “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius de Moraes.

 

 

Não deu outra. No Grammy de 1965, Tom foi indicado na categoria Revelação, sendo derrotado pelos Beatles, mas João e Astrid tiveram o reconhecimento devido. “Getz/Gilberto” foi escolhido “Álbum do Ano” (batendo, entre outros, “A Hard Days Night”) e a gravação de “Garota de Ipanema”, com Astrid, recebeu o Grammy de “Gravação do Ano”.

 

 

É importante dizer que o Grammy (cujo nome original é Gramophone Awards) é um prêmio da The Recording Academy, uma instituição estadunidense. Até o início dos anos 1990, quando foi criada a categoria World Music, tratava-se de uma premiação voltada para o mercado fonográfico, sempre borrando as fronteiras entre valor estético e valor financeiro. Durante um bom tempo, de fato, o Grammy era uma baliza para conhecer artistas que tinham obras relevantes nos dois polos – estético e financeiro. Dá pra falar isso do pessoal da Bossa Nova, que trouxe uma sonoridade realmente revolucionária em seu tempo, mas que, é bom dizer, só teve este mérito reconhecido porque gravou e se apresentou nos USA. Se Tom e cia. tivessem ficado aqui, gravando pela prestigiosa, porém nacional, Elenco, é possível que nunca tivessem o reconhecimento que tiveram.

 

 

O mesmo dá pra falar do jovem arranjador carioca e superstar do jazz funk, Eumir Deodato. Ainda jovem, Deodato militava nos Estados Unidos, chegando a arranjar discos do próprio Tom Jobim, como “Wave” e “Tide”, dois trabalhos definidores da mudança estética da obra de Tom, deixando a Bossa Nova para trás, ao fim dos anos 1960. Deodato adentraria os anos 1970 como um artista promissor solo e foi a partir de sua presença nas paradas com uma versão jazzística e maravilhosa de “Also Sprach Zarathustra”, que ele recebeu a indicação para concorrer na categoria Melhor Performance Pop Instrumental, em 1974, saindo-se vitorioso.

 

 

Depois de um hiato de 20 anos, o Brasil voltou a figurar no Grammy, com a vitória de Sérgio Mendes – outro monstro sagrado da Bossa Nova pop nacional – e seu álbum “Brasileiro”, vencendo na categoria World Music. Depois dele vieram Milton Nascimento (duas vezes), Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Eliane Elias, Céu, Thalma de Freitas, Chico Pinheiro, que alternaram indicações e vitórias. Por fim, em 2023, Anitta e o grupo vocal Boca Livre estiveram presentes na premiação. Enquanto a cantora amargou a derrota, o Boca, junto com o cantor e compositor panamenho Ruben Blades, voltou para casa com a estatueta de Melhor Álbum de Pop Latino, por “Pasiero”.

 

 

Alguém aí ficou sabendo da vitória sensacional do Boca Livre no Grammy de 2023? Imagino que não. Isso porque fãs de Anitta, junto com veículos duvidosos da imprensa e assessorias de gravadora sem noção, turvaram a premiação e a converteram num evento em que Anitta desfrutava de uma exclusividade “natural” como representante do Brasil. Ao fazer isso, apagaram o passado da música nacional no Grammy e deixaram de lado outros artistas que militam com dificuldade num mercado cruel e injusto para um país que emerge de anos em que a cultura foi jogada no lixo. E não adianta clamar para a obra de Anitta um selo de autenticidade estética porque, seu último álbum, “Versions Of Me”, é um produto feito sob encomenda para o mercado americano. É um disco com pouco ou nenhum traço do início de carreira da cantora, que abraçou os mesmos ritmos latinos para se tornar viável na prateleira de artistas vinculados a este estilo.

 

 

 

 

Há muito de Brasil no Grammy, talvez menos do que deveria ou acharíamos justo, porém, além de darmos importância demais à premiação, estamos alimentando uma estrutura de burrice, desinformação e falta de noção e respeito com a música brasileira. Pensem nisso.

 

 

OBS: veja a resenha sobre o último álbum de Anitta, “Versions Of Me”, aqui

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Anitta e a negação do passado brasileiro no Grammy

  • 7 de fevereiro de 2023 em 22:42
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    Eumir Deodato ganhou o Grammy de Melhor Performance Pop Instrumental com “Also Sprach Zarathustra” em 1974.

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  • 7 de fevereiro de 2023 em 19:59
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    Eumir Deodato ganhou o Grammy de Melhor Performance Pop Instrumental com “Also Sprach Zarathustra” em 1974.

    Resposta

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