Ana Cañas e Belchior – simbiose afetiva e artística

 

 

 

O show “Ana Cañas Canta Belchior” acabou de ser premiado pela APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte – como o melhor de 2022. Na última sexta, dia 02 de fevereiro, a cantora paulistana disponibilizou em sua conta no YouTube a íntegra do DVD homônimo desta apresentação, que andou por várias cidades do país em 2022 e promete ainda uma vida útil significativa em 2023. Não é para menos. O que Ana apresenta neste abraço à obra de Belchior alcança o ponto mais alto de sua carreira – iniciada em 2007 – e a coloca no time das grandes cantoras brasileiras.

 

 

A trajetória de Ana Paula Cañas no canto veio da necessidade absoluta. No fim do século passado, em meio a grandes dificuldades financeiras e problemas familiares, a moça vivia uma rotina de vários bicos e serviços diversos para uma subsistência mínima quando veio a chance de ingressar no mundo da música. Intuitiva a princípio, Ana conseguiu a oportunidade de cantar na noite e foi se aprimorando no ofício, movida pela necessidade absoluta, até que foi se encantando com o que viu e sentiu. Tornou-se cantor com registro rascante, pessoal, porém capaz de nuances suaves e versáteis, com domínio de palco típico de quem ralou em vários bares de São Paulo.

 

 

Descoberta e contratada pela Sony Music, ela iniciou uma carreira de cantautora, que foi marcada por uma postura independente e autônoma. Seu primeiro hit veio no segundo álbum, “Hein?”, lançado em 2010, com a boa faixa “Esconderijo”. O que parecia o ponto inicial de uma ascensão, marcou também a barra pesadíssima da perda do pai, o que levou Ana para a beira de um abismo existencial, que comprometeu seu desempenho como cantora e compositora, algo que se refletiu nos trabalhos seguintes, “Volta” e “Coração Inevitável”, lançados nos anos de 2012 e 2013. Foi com “Tô Na Vida” e a apresentação no Rock In Rio de 2017, ao lado de Hyldon, que Ana readquiriu força e viço, retornando com tudo em 2019, no álbum “TODXS”, em que abraçava sua militância feminista e pessoal.

 

 

A chegada da pandemia da covid-19 teve alto impacto na vida da cantora em 2020. O que parecia um ano perfeito para cair na estrada, consolidar sua imagem e divulgar as canções do álbum, tornou-se um poço de incertezas e insegurança artística e pessoal. A solução veio na onda das lives transmitidas pelo YouTube, o que a levou a marcar um evento por conta de problemas com o aluguel e para manter sua equipe de músicos e apoio com perspectivas: uma live cantando várias canções do repertório de Belchior. A partir de uma audiência de mais de 500 mil pessoas, Ana teve a sacada de lançar um álbum dedicado integralmente à obra do velho compositor cearense. Para isso abriu um financiamento coletivo, cuja meta foi atingida. Em 2021 ela soltava o seu primeiro trabalho como intérprete, “Ana Cañas Canta Belchior”.

 

 

O que veio depois é história. Uma vez superada a pandemia, Ana levou o show para a estrada e foi aclamada por onde passou. De fato, as canções de Belchior, angulosas e liricamente complexas, caem como uma luva para uma cantora que oscila entre o rock e o jazz com a desenvoltura que Ana tem. A partir dessa assimilação de influências e da noção que ela, assim como vários intérpretes que emprestaram suas vozes para Belchior no passado, de Vanusa a Elis Regina, tem a sua história pessoal e musical. Sem querer imitar ou homenagear ninguém, Ana conseguiu achar seu espaço na interpretação de clássicos como “Divina Comédia Humana, “Alucinação”, “Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”, apresentando a obra de Belchior para um público diverso, composto por novos e velhos admiradores.

 

 

“Eu me transformei totalmente cantando esse repertório. Me atingiu no cerne, na alma”, ela declarou por conta do lançamento do DVD. Antes do registro oficial, o show foi apresentado em quase 100 palcos pelo Brasil e indicado ao APCA como “Melhor Show do Ano”, em 2022 (título que ganhou hoje). O registro audiovisual reúne canções como “Monólogo das Grandezas do Brasil”, “Sujeito de Sorte” e “Coração Selvagem” e totaliza 17 faixas. Ana acrescenta: “Escolhi o setlist com base na emoção que cada música causa na atualidade, estão ali as minhas preferidas”.

 

 

Ao longo dos 83 minutos que compõem o DVD, a cantora e compositora convida Ney Matogrosso para interpretar a música “Paralelas”. “Antes do Fim”, por sua vez, última música do disco Alucinação (1976), tem a participação do rapper Rael, artista que “tem a particularidade do universo ao qual pertence”, como define Ana. “Sempre tive vontade de unir o rap à lírica belchiorana, sinto que Belchior estaria muito atento a este universo”, complementa ela.

 

 

Com câmeras especiais guiadas por uma equipe de cinema, o DVD tem como proposta uma atmosfera intimista e existencial por meio da voz de Ana Cañas, tudo para firmar a conexão com o legado e existência de Belchior. A performance das canções é intercalada com blocos documentais que contam a história do projeto – gravado no Estúdio NaCena, em São Paulo, com direção de Hugo Moura.

 

 

Processo fiel à vivência de Belchior, toda a concepção do registro foi realizada em contato com os dois filhos deixados pelo músico cearense. “Estive em contato com Mikael e Camila durante todo o projeto. Acabei ganhando de presente uma inédita do Belchior, uma canção incrível escrita por ele em 1987, com seu parceiro Gracco. ‘Um rolê no céu’ é um título muito significativo, pois parece uma mensagem dele para nós agora, lá do alto das estrelas. Foi muito emocionante gravá-la no DVD”, revela a artista.

 

 

Ana planeja o lançamento de um novo disco de inéditas para breve, mas, por enquanto, passou da hora de conhecer esse show e essa vivência que ela oferece ao interpretar as canções de Belchior. Há algo de leve, de natural nesta parceria e ela, certamente, é uma das grandes belezuras da música brasileira atual.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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