A irresponsabilidade nas ruas

 

 

Não podemos acusar de incoerentes os apoiadores do atual ocupante da presidência. Se eles demonstraram, só com seu voto, o desrespeito pelo próximo, pelo pobre, pelas diferenças, demonstrando a única preocupação consigo, não seria diferente no dia de ontem. Mesmo diante das advertências mundiais, várias pessoas saíram às ruas para protestar, pedir o fechamento do Congresso, do STF, um novo AI-5 e, ainda, o fim do PT. Aliás, alguns cartazes perguntavam: “O que é o coronavírus diante do PT?”. Pois é.

 

Não seria diferente agora, que os alertas mundiais pedem para ficar em casa. Eles foram às ruas mesmo assim, vestidos de verde e amarelo, pedindo um Brasil ainda mais caótico do que o atual. Mais violento e excludente do que o vigente. Mais injusto, inflacionado, desvalorizado, anti-cultura do que esta versão 2020. É abominável, mas coerente. O próprio ocupante, o burrista-chefe, foi ao encontro do povo que estava em Brasília, rompendo o monitoramento a que era submetido, por ser, ele mesmo, suspeito de estar com o vírus.

 

Uma análise fria dos mirrados, porém sérios, atos de ontem dão conta do seguinte: uma parcela da população quer o fim formal da democracia, a migração de todos os poderes para o Executivo, a perseguição oficial a todos os que discordam de suas crenças, que praticam outra religião, que pensam diferente. E querem que parem de falar sobre o coronavírus, segundo eles, uma mentira, disseminada por uma imprensa comunista. Perguntaram para um dos presentes na Avenida Paulista sobre a importância de se estar na rua mesmo com o pedido para ficar em casa. O sujeito disse: “é preciso acabar com o socialismo no Brasil. Aqui só agora está tendo direita”.

É uma gente que saiu do sanatório do ressentimento, dos escombros da casa grande, que é parasitária mesmo. E burra. E má. Lembro do meu primeiro emprego, como estagiário de uma agência da CEF em Copacabana, um verdadeiro ninho dessa gente. Eu entregava extratos bancários e contracheques no balcão – era 1989, gente – e as senhoras e senhores vinham buscá-los. Se eles atrasassem, as viúvas de militares das três armas amarravam a cara, franziam o semblante e iam embora sem agradecer pelo meu trabalho de informar. Se os contracheques atrasassem mais, elas vinham e, diante de nova negativa, perguntavam: “- você sabia que eu sou viúva do general – almirante, brigadeiro – fulano de tal? Eu EXIJO o meu contracheque”. Eu nada podia fazer, claro. Tinha que servir de lixeira para ela depositar seu rancor e ódio pela sociedade, daquela vez, não serví-la a contento.

 

Sendo assim, o quê é o coronavírus pra essa gente? Algo que não vai atingí-los. Só ao pobre. Talvez já haja “reflexões” de que o covid-19 vai “fazer uma limpeza necessária” ao matar pessoas. Talvez.

 

Duas notas políticas pra fechar o texto.

 

A atitude do próprio burrista diante do fato é a mesma que ele já havia tomado diante da disseminação do preconceito, da grosseria, da truculência. Se o “presidente” não se importa, por que raios alguém haveria de se importar? Se ele está pegando nas mãos de todo mundo, sem máscara, numa aglomeração, dias depois de ser submetido a um teste de coronavírus, por que alguém haveria de ter cuidados? É a mesma coisa de “se o presidente diz que não vai estuprar uma deputada porque ela é muito feia, por que eu faria diferente?”.

 

O governador de Goiás, ronaldo caiado, médico, esteve discursando num ato em Goiânia e, depois de se vangloriar como um “combatente da direita desde muito tempo”, advertiu os participantes sobre estarem na rua, mesmo com o alerta do coronavírus. Foi clamorosamente vaiado e enxotado do ato, me lembrando, veja você, a falta de comunicação entre a esquerda tradicional e a esquerda revolucionária na França de 1968. Todos queriam a mesma coisa, mas os mais jovens criticavam os mais velhos por falta de audácia, por anacronismo, por acomodação. Claro, o exemplo é meramente ilustrativo, mas o bolsonarismo, sua ignorância, sua dimensão paralela, sua alucinação como força política, é uma realidade que não irá embora tão facilmente. As pessoas estão aí, loucas, furiosas, movidas pelo ódio, contra quem pense diferente.

 

O corona não tem nada a ver com isso.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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