A estreia do obscuro grunge belga de dEUS

 

 

A Bélgica é aquele país europeu com vários “dois lados”. No meio dos caminhos que ligam França e Alemanha, Inglaterra e sul do continente, é central e ao mesmo periférico. Está dividido em duas regiões dominadas por línguas bem distintas: o francês, de um lado, e o flamenco, de outro. Para complicar, suas dimensões a tornam mais aberta ao inglês, algo que alimenta um bem cultivado cosmopolitismo. De lugares assim, podem surgir criaturas interessantes. No caso das artes plásticas, o nome de René Magritte logo vem à tona. Ou Hergé, se a conversa é sobre quadrinhos.

 

Vamos para a música. A Bélgica é a terra do Pukkelpop, um dos principais festivais europeus. É também a terra do Front 242, destaque na eletrônica. Mas alguém aí consegue citar uma banda de rock daquelas plagas? Desde o final dos anos 80, Antuérpia, cidade situada do lado flamenco da Bélgica, revelou uma cena efervescente. Muitas bandas se formaram, vários bares acomodaram seus shows: floresceu um clima favorável para a mistura de gêneros e para experimentações.

 

Nesse laboratório se criou dEUS, banda que teve como núcleo central Tom Barman e Stef Kamil Carlens. Ainda mais jovem que eles, Klaas Janzoons juntou-se ao duo, ao lado de outros instrumentistas. Em 1992, dEUS participou em um concurso organizado pela revista Humo. O ano de 1993 foi decisivo para a banda. A formação se consolida com a entrada do baterista Jules de Borgher, até então motorista da trupe, e Rudy Trouvé, um experiente guitarrista. dEUS já havia gravado algumas demos, mas naquele ano passa a circular uma fita cassete com seis faixas produzidas com mais cuidado.

 

O passo seguinte foi o lançamento de um EP, Zea, com três músicas – cantadas em inglês, como quase tudo que dEUS criou. Rádios belgas fazem uma boa divulgação desse material, o que desperta o interesse da Bang! Music, uma gravadora de Bruxelas que dava seus primeiros passos. O quinteto volta para o estúdio para produzir um LP, Worst Case Scenario. Aí já estamos em 1994. Antes mesmo do álbum sair em setembro, a banda já estava circulando para além das fronteiras belgas. Não apenas na Holanda e na França, mas também na Inglaterra, onde debuta em junho no Glastonbury Festival, acompanhada de um primeiro single.

 

A escala de sua repercussão havia mudado e dEUS passa a ser cortejada por grandes gravadoras. Quem levou a melhor foi a Island, que relançou Worst Case Scenario em outubro de 1994. No total, são divulgados três singles e três vídeos com faixas do álbum. A banda caiu também nas graças da MTV europeia. Além de ter seus vídeos em alta rotação, foi indicada em 1994 para o prêmio de Revelação do Ano. Em março de 1995, dEUS se apresentou no Astoria London, um show que depois foi exibido na MTV. Com essas credenciais – contrato com uma major multinacional e indicação para prêmio da MTV –, ambas inéditas para uma banda belga, seria um pecado não louvar o trigésimo aniversário de Worst Case Scenario.

 

 

Se Tom Waits fosse grunge

 

Os produtores de Worst Case Scenario são os também instrumentistas Pierre Vervloesem e Peter Vermeersch. Guitarra e clarinete estão entre suas contribuições para faixas do álbum. O contato com a dEUS já ocorrera para a gravação do material de Zea e da demo No More Soda For Clarence. Para o álbum, a banda se concentrou no Studio Caraïbes, em Bruxelas, que Björk usaria para registrar uma das faixas de Volta (2007). O LP da Island conta com 14 faixas, uma a mais que a versão lançada na Bélgica. No lugar de uma música original (“Let Go”), entraram duas que vieram diretamente de Zea e que não foram gravadas no Caraïbes. Ficou de fora a faixa título do EP, além da interessante “Violins & Happy Endings”, que estava na demo No More Soda.

 

Vervloesem e Vermeersch foram parceiros em projetos musicais, como o X-Legged Sally, banda de vanguarda criada em 1988, umas das primeiras na Bélgica a combinar uma paleta de estilos musicais muito diferentes (jazz, rock, improvisação e música clássica), tornando-se uma referência para a cena musical indie belga que se desenvolveu nos anos 90. A combinação de “estilos musicais muito diferentes” é recorrente quando se busca caracterizar a sonoridade da dEUS. Velvet Underground, The Violent Femmes, Leonard Cohen, Captain Beefheart, John Coltrane e Tom Waits são referências que apontam para as influências da banda.

 

O nome da banda vem de uma canção da Sugarcubes. A inversão entre minúsculas e maiúsculas é proposital. Sabe-se lá porque a banda de Björk usou uma palavra latina para sua profissão de ateísmo. O resultado criou uma curiosa ressonância entre o romano infiltrado no inglês e o português que permaneceu fiel ao latim. O documentário sobre Worst Case Scenario cita várias outras influências: Knitting Factory, No Wave, Albini-type sounds, Neil Young, eletrônica, Urban Dance Squad… Na mesma fonte, Barman confessa sua ligação com o grunge, mas a tempera com elementos de outras inspirações: samples, loops, declamações…

 

O mesmo Barman filosofa sobre o fazer música na Bélgica recorrendo à imagem de uma esponja que assimila muitas e distintas referências. Ao mesmo tempo, perde a modéstia ao sugerir que a dEUS conseguiu ir além de suas influências. Nada nos impede de concordar com ele ao ouvir as faixas de Worst Case Scenario. Após uma introdução em que uma voz feminina lê em francês um trecho do que pudemos supor ser um tratado de medicina, ouvimos os acordes iniciais de “Suds & Soda”. É o violino de Janzoons, uma das marcas registradas da dEUS. Ao longo do álbum, esse violino oscila entre riffs e ataques percussivos.

 

Segundos depois, entram uma bateria forte e uma guitarra mântrica. Uma primeira explosão é provocada pela segunda guitarra, em alta distorção. Em seguida, Carlens começa a gritar a primeira das centenas de “Fridays” que cortarão nossos ouvidos. Barman canta no contraponto. As duas vozes se juntam no refrão, avassalador. Não há como não associar a canção com o grunge. A letra tem algo de “Smells Like Teen Spirit”. Mas o violino lhe dá uma cor particular. Além disso, há um Fender Rhodes se insinuando, contribuição de Anton Jansens, instrumentista das bandas Noordkaap e Soapstone. Lá pelo meio da faixa, ele protagoniza um solo psicodélico.

 

Em seguida, escutamos “W.C.S. (First Draft)”, as iniciais do título do álbum. Por muito tempo, a faixa é dominada por um loop sampleado de “Little Umbrellas”, de Frank Zappa, outra das influências da banda. Aliás, Vervloesem é considerado o Zappa belga. Vermeersch, o outro produtor, toca clarinete nessa faixa, também seguindo os passos do arranjo de Zappa. Um segundo sample, uma música de Don Cherry, tem uma participação mais discreta. Barman canta quase falando, “It’s the thing between nowhere and the opposite side / It’s the something hidden behind the eloquent surface”, passando pelo verso que dará o título ao documentário já mencionado, até explodir no refrão de um verso só, a guitarra de Trouvé se esganiçando maravilhosamente.

 

Fazendo uma citação a Velvet Underground em seu título, “Hotellounge (Be The Death Of Me)”, foi divulgada em formato single, assim como “Suds & Soda”. Uma canção de contrastes em seus mais de seis minutos. O refrão rompe com a calmaria da maioria dos versos. E contracena com guitarras em breves explosões, que literalmente estouraram o amplificador utilizado na gravação. A letra de “Hotellounge” apela para cenas românticas retrôs, uma atmosfera Richard Burton-Liz Taylor, casal diretamente mencionado em outra faixa. Mulheres imaginadas ou não identificadas povoam várias músicas de Worst Case Scenario.

 

O principal responsável pelas letras é Barman, também guitarrista. Ele prefere as frases de efeitos às mensagens coerentes. Por vezes, divide os vocais com Carlens e com toda a banda. Sua voz tem uma musicalidade cativante, frequentemente alterada pelo uso de microfones distorcidos. A verve jazzística da banda é perceptível. Desponta com mais nitidez na tranquila “Jigsaw You”, na pesada “Morticiachair” e na declamada “Great American Nude”. Já “Via”, faixa que também foi destacada em single, lembra Pavement e cita R.E.M. em sua letra. No lado mais guitar band da dEUS, temos “Let’s Get Lost” e “Mute”, esta com ressonâncias claras de Pixies, uma das principais fontes do grunge. “Shake Your Hip” parece uma brincadeira-Beatles e “DiveBomb Djingle” (oriunda das sessões de Zea) uma jam-bluegrass insana.

 

Há ainda duas baladas em Worst Case Scenario, “Right as Rain” e “Secret Hell”. Canções delicadas, mas acompanhadas por dissonâncias e com versos que desassossegam, como esses: “You know well / Just never tell / If someone’s got a secret hell”. Há quem considere o álbum da dEUS eclético e inconsistente. Estou com o outro grupo: me acostumei a seguir suas faixas como um roteiro bem composto. E ainda pergunto: se fosse uma banda britânica ou estadunidense, estaria mais presente em listas de “melhores dos anos 90”?

 

Como já sabemos, em 1994 a banda estava em alta. A turnê basicamente europeia de Worst Case Scenario desdobrou-se por mais de 100 shows, incluindo festivais como Reading e, claro, Pukkelpop. Em casa, dEUS foi atração no palco secundário, ao lado de Morphine e The Jesus Lizard. Em agosto de 1995, a banda voltou ao estúdio com Vervloesem e Vermeersch para gravar algumas faixas inéditas. O resultado foi My Sister = My Clock, algo entre um EP e um LP, com 25 minutos. A composição ficou dividida entre vários músicos do quinteto, dando vazão a experimentalismos que afastaram a banda do pop.

 

dEUS gravaria ainda mais dois álbuns antes do milênio encerrar: In a Bar Under the Sea (1996), que retoma o estilo da estreia, e The Ideal Crash (1998), que mostra mudanças na sonoridade, mais encorpada e afeita a melodias. O sucesso da turnê de Worst Case Scenario cobrou um preço: Trouvé e Carlens se divertiram bem menos do que Barman. Trouvé foi o primeiro a deixar a banda em 1995, Carlens fez o mesmo um ano depois, embora ambos tenham participado das composições de In a Bar Under the Sea. As debandadas tiveram ainda como motivação a dedicação a outros projetos, não só musicais. Trouvé era também um pintor – a capa de cores fortes do álbum de estreia é ilustrada por um quadro seu. Barman, por sua vez, dividiu a liderança da dEUS com experiências na produção de filmes e fotos.

 

dEUS ainda existe. Da formação de 1994, restaram apenas Barman e Janzoons. De Borgher deixou a banda em 2003. Em 2023 saiu o quinto álbum desde The Ideal Crash. How to Replace It é interessante, mas é impossível reproduzir o impacto de Worst Case Scenario.

 

 

Bélgica ainda

 

Em 2016, a Warhaus, outra banda belga, lançou seu primeiro álbum, We Fucked a Flame into Being. Por trás do nome do projeto está Maarten Devoldere, também vocalista da Balthasar, uma banda de indie-pop formada em 2004. O que escutamos em We Fucked a Flame into Being, com Devoldere contracenando com a voz de Sylvie Kreusch, é uma combinação de Leonard Cohen, Serge Gainsbourg, soul americano e trilhas sonoras dos anos 60. É uma pena que o álbum seja pouco conhecido para além das terras baixas.

 

Em 2010 a Balthasar fez a abertura de um show da dEUS. Mas a conexão mais interessante vem em uma entrevista que Devoldere concedeu ao site grego The Basement em 2022 sobre seu trabalho solo. Olhem só:

“Os belgas não têm muita ideia de orgulho nacional. Isso é muito legal porque, de certa forma, somos muito abertos para outras culturas. (…) Não há realmente um som belga, é mais como uma atitude em relação à música que é bastante comum. Fazemos nossa própria mistura. Por exemplo, quando crescemos nos anos 90, tínhamos dEUS, que era uma banda belga famosa, um bom exemplo de como misturar muitas coisas. Muito criativa, nos mostrou que podíamos fazer muitas coisas com música pop e não apenas ser uma guitar band”.

 

Nota 1: Em 2009, Worst Case Scenario foi relançado, com material extra: músicas que acompanham os singles, faixas ao vivo, versões demo, etc.

 

Nota 2: Tive conhecimento da dEUS acompanhando o Lado B apresentado por Fábio Massari na MTV Brasil. Meu comentário é um presente ao Massari nos seus 60 anos! Vida longa, reverendo!

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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