O Baterista e o Tempo

 

 

 

Eu sempre quis tocar bateria. E eu sempre soube que não tinha coordenação motora suficientemente desenvolvida para isso. Sou canhoto para escrever, destro para chutar, grande, gordo, em suma, as chances de lograr êxito eram poucas. E, como quem reconhece suas limitações sem grilos, sempre admirei os bateristas. O acaso até me deu a chance de me casar com uma mulher admirável que é baterista e bastante habilidosa. Mas eu tenho um tipo de baterista preferido: o discreto. O que marca sua presença na dinâmica de uma banda através da sua quase invisível presença. Não gosto de solos, pirotecnias, exibicionismos…Gosto do cara que está lá sem que a gente perceba, que joga pro time, que une os tijolos do muro e que segura a onda. Gosto de bateristas como Charlie Watts. E Ringo Starr. Caras assim.

 

A morte de Charlie ontem, aos 80 anos, é um tiro no peito de quem ouve música e há vários motivos pra isso. Primeiro porque a gente levou uma rasteira do destino ao ver que, não, os Stones não são eternos, ainda que desafiem com riso e malandragem o passar do tempo. Mas não sei como Jagger, Richards e Ron conseguirão subir num palco, entrar num estúdio e pensar em compor canções sem ter a presença de Charlie na banda. O cara estava nos Stones desde janeiro de 1963. O grupo já tinha em mente o lançamento de um disco de inéditas no ano que vem e a celebração dos 60 anos da banda. Há algum tempo vem lançando versões ampliadas de seus discos – “Tattoo You”, de 1981, é o próximo a ser revisto e relançado – e tudo isso, toda essa engrenagem, essa linha de ação contemplava a presença de Charlie na banda.

 

Ele era uma espécie de ombudsman das extravagâncias de Keith e Mick. Sonoras e comportamentais. Seu semblante de tédio, de desaprovação, uma cara de quem está nessa para tocar e nada mais, eram o grande barato da presença de Watts. E dizer que sua graça era apenas essa é passar atestado de desconhecedor musical. Sua ação na bateria – sempre com simplicidade marcante – era essencial para dar desempenho para a máquina rítmica que eram os Stones. Seu entrosamento era muito maior com Keith Richards do que com o baixista (Bill Wyman ou Darryl Jones) da vez. A construção de Watts era totalmente a serviço de ritmos e batidas, grooves, levadas. Não lembro de vê-lo solar ou abusar de seu espaço, muito pelo contrário. Ele era desses nobres representantes da estirpe dos bateristas que jogam pro time. Aparece sem aparecer. E ele ainda era um fã de jazz, se apresentava com seu quinteto, tocando o que gostava, sempre com elegância e discrição. Era um cavalheiro.

 

Tenho reouvido o “Tattoo You” por conta do tal relançamento e me dei conta de como a presença de Charlie é essencialmente discreta em canções conhecidas como “Start Me Up”, mas também em “deep cuts” como o reggaezinho “Slave” ou no rockão clássico “Little T&A”, que tem a quintessência dos Stones. Ou uem blues como “Black Limousine”. Ou em baladas adoráveis como “Waiting On A Friend”. Ou numa preferida pessoal, como “Tops”. Charlie era o cara certo para tocar qualquer variação de canção stoneana, o cara que tinha o domínio absoluto do tempo, do ritmo e da própria essência do que a banda era. Ele tinha aquela cara de inglês mau humorado, contrastando com as explosões de alegria e vigor que são Mick, Keith e Ron. E que foram Bill, Mick e Brian e todo mundo que já integrou o time dos Stones.

 

Ainda que eu goste da ideia de que os Rolling Stones desafiam o tempo e contrariam a lógica, a física e tudo mais, não sou totalmente resistente a um anúncio de encerramento de atividades após a morte de Charlie. Seria o mais lógico e a maior homenagem a fazer para o baterista. Sem ele, por mais que a gente queira, não será mais a mesma banda e, mesmo que Mick seja um homem de negócios travestido de frontman, até ele deve estar com muitas dúvidas e questionamentos sobre o futuro. Chuto que o mais provável deve ser o cumprimento de datas agendadas ainda para este ano, nas quais Charlie já não estaria e para as quais escalou Steve Jordan para seu lugar, e lembrar dos 60 anos em 2022 com a confirmação da despedida dos palcos e encerramento de atividades.

 

Para quem desafia o tempo, parar por conta da morte de Charlie seria, de fato, a maior e mais sincera homenagem que os Stones poderiam fazer para o baterista. Fico na torcida.

 

Em tempo: Vi Charlie Watts ao vivo duas vezes. A primeira foi no Maracanã, quando os Stones se apresentaram no Brasil pela primeira vez, trazendo a Voodoo Lounge Tour para cá. Após três apresentações em São Paulo, a banda desembarcou no Rio para duas datas no Maracanã, 03 e 04 de fevereiro. Eu fui no dia 03 com meus amigos de Uerj. No programa também tinha Barão Vermelho, Rita Lee e Spin Doctors.  A outra vez foi em 18 de fevereiro de 2006, na Praia de Copacabana, quando o grupo veio trazer a “Bigger Bang Tour” para cá. Vi de longe, mas a força sonora da banda era algo admirável. Em ambas as vezes, Watts foi o Stone mais aplaudido pelas multidões.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

3 thoughts on “O Baterista e o Tempo

  • 26 de agosto de 2021 em 22:13
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    Há tempos alimentava a crença dos Stones serem um fato social.
    Também os vi no Hollywood Rock no mesmo dia. Agradecido, já que o segundo show não teve Gimme Shelter .
    Você foi preciso. Mas sempre tem o filho do Ringo pra tocar com os tios .

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  • 25 de agosto de 2021 em 22:22
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    Obrigado pelo comentário, meu caro!

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  • 25 de agosto de 2021 em 16:40
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    Li e gostei bastante de seu texto. Você escreveu com conhecimento de causa e sobretudo com feeling. Acompanho a carreira musical dos Rolling Stones desde 1986 e mais intensamente a partir de 1989. Tive o prazer e a sorte de ver Charlie Watts ao vivo em ação juntamente com os Stones no show da 1a turnê deles no Brasil, a turnê Voodoo Lounge em 1995. Foi um show inesquecível com a abertura marcada pela releitura mais puramente stoneana que conheço, a de Not fade away. Essa lembrança das batidas iniciais do bom velhinho Watts levarei comigo para sempre. Ele jamais será esquecido! God bless Charlie!

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