Caetano Veloso e A Outra Trilogia “Cê”

 

 

Um período particularmente interessante na carreira de Caetano Veloso chegou ao fim em 2012. O lançamento de “Abraçaço” acenava para o encerramento do que se convencionou chamar de “Trilogia Cê”, ou seja, o alinhamento dos álbuns “Cê” (2006), “Zii e Zie” (2008) e “Abraçaço” (2012) em termos estéticos e temporais.

 

A crítica especializada logo comentou e alardeou o lançamento de “Cê” como um suposto abraço de Caetano ao Rock. Esta é uma análise reducionista, no mínimo, uma vez que os três discos, alinhados, querem comunicar muito mais. A verdade é que o período compreendido entre o ano 2000 e 2014 atesta uma fase extremamente prolixa do velho compositor baiano, que passeou com desenvoltura por vários terrenos musicais. Discos em parceria com Jorge Mautner (“Eu Não Peço Desculpa”, 2002), de standards da canção americana (“A Foreign Sound”, 2004), duetos com Roberto Carlos (“A Música de Tom Jobim”, 2008) e Maria Gadu (“Multishow Ao Vivo”, 2011), entre outros, mas, podemos apontar o curso maior da carreira de Caetano nos discos gravados e interligados com “Cê”.

 

Cada um dos três álbuns foi acompanhado por uma contraparte gravada ao vivo, uma vez que Caetano procurou divulgá-los como sempre fez em sua carreira, procurando elaborar shows em que os principais elementos (e canções) dos discos fossem recriados ao vivo, marcando a passagem do tempo. O mesmo procedimento foi usado em “Circuladô Vivo” (1992) e “Noites Do Norte Ao Vivo” (2000), que refletiam os repertórios dos respectivos discos de estúdio, mas ampliavam seus conceitos, dando a Caetano a chance de realizar suas fotografias dos momentos. É uma preocupação sua o atrelamento de sua obra ao tempo. Seus discos sempre trazem canções que são análises de conjuntura. “Cê”, no entanto, não seguia essa norma.

 

Confesso que seu lançamento me causou irritação. Até hoje não gosto do conjunto de canções que o compõem, mais ainda: a associação imediata ao Rock também foi motivo de incômodo. Acompanho a carreira de Caetano desde muito tempo e não é preciso ir muito longe para notar que seu diálogo com o Rock nunca foi fácil. Em Velô (1984), ele tentava outro abraço ao estilo em sua face oitentista, puxando arranjos e letras para um clima de contestação e modernidade. Era o tempo da Nova República, o que justificava letras como “Podres Poderes”, talvez, mas que gerava bons momentos, como “O Quereres” ou “O Homem Velho”. Caetano nunca foi um roqueiro e, muito provavelmente, não deseja ser. Pensar no ritmo ao elaborar o conceito de “Cê” pode ter feito mal ao disco.

 

O movimento foi semelhante ao de David Bowie em 1989, quando formou o Tin Machine e resolveu enguitarrar seu som, há tempos imerso em uma música Pop menos visceral (mas com bons momentos ao longo dos 1980’s). Caetano criou sua Banda Cê, composta por músicos mais jovens e conectados com a música feita no Rio de Janeiro dos anos 00, a saber, Pedro Sá (guitarrista, companheiro de longa data, amigo de seu filho, Moreno Veloso), Ricardo Dias Gomes (baixo, piano) e Marcelo Callado (bateria). Com o lançamento do disco, logo pipocaram as tais análises sobre conexões do trabalho com “Velô” e “Transa” (1972). A associação com o segundo talvez se dê pela familiaridade que o álbum ganhou a partir de sua inclusão em listas de melhores discos nacionais de todos os tempos e seu culto por revistas especializadas, o que está longe do erro, uma vez que “Transa” é um dos melhores trabalhos de Caetano.

 

O problema é que não há conexão visível (audível) em “Cê”, motivado por um momento importante na vida de Caetano, a separação de sua esposa, Paula Lavigne. Movido pelo binômio liberdade/tristeza, o baiano lançou-se em um processo de redescoberta/reinterpretação de relacionamentos e, trocando em miúdos, caiu na esbórnia, algo louvável e que deve ter feito o veterano compositor sentir-se mais jovem. Sendo assim, ao contrário das reflexões típicas de um sexagenário, Caetano veio com um conjunto de canções sobre sexo, juventude, traição e descoberta. Não precisava, no entanto, despir sua sonoridade ao básico dos básicos, usando como guia estético um semi-rock enguitarrado, com o qual, repito, jamais se deu muito bem.

 

 

Por mais que “Cê” tenha recebido elogios – e recebeu – o grande salto para frente veio com o lançamento de “Multishow Cê Ao Vivo” em 2007. Junto com o conceito do álbum que o gerou, Caetano adicionou canções de outros tempos, num processo de autorreferência bastante usual e costurou associações entre, por exemplo, “O Homem Velho” (1984) e “O Homem” (2006), canções sobre ele mesmo, em diferentes tempos. Além disso, pegou “Fora da Ordem” (1991), sua impressão sobre o mundo do início dos anos 1990, supostamente globalizado e sem contrapartida socialista e misturou com “You Don’t Know Me” (1972), canção de “Transa” e “London, London” (de seu disco homônimo, de 1971), num híbrido meio em inglês, meio em português, falando de baião, Bahia e exílio. Resgatou “Sampa” (1978), “Desde Que O Samba É Samba” (1993) e “Como Dois e Dois” (1974, que deu de presente para Roberto Carlos) e fez “Cê” ganhar mais sentido e contexto, algo que felizmente embaçou o juízo roqueiro apressado que o disco mereceu no ano anterior.

 

 

 

Dois anos depois, Caetano viria com “Zii e Zie”, novo capítulo da radiografia daquele seu momento. Muito mais triste, denso e cerebral que “Cê”, o disco trazia canções belas (“Lapa”, “Falso Leblon”), interessantes (“Lobão Tem Razão”), conjunturais (“Baía de Guantánamo”), uma versão bem sacada (“Incompatibilidade de Gênios”, de João Bosco e Aldir Blanc) e um contingente elevado de músicas esquecíveis/ruins (“A Cor Amarela”, “Perdeu”, “Sem Cais”, “Tarado Ni Você”, “Menina da Ria”). Em termos de show, mais uma tacada de gênio: abriu o repertório à escolha do público, ou melhor, à recepção dele em apresentações batizadas de “Obra Em Progresso”, nas quais testou várias composições suas e versões, em busca de um setlist perfeito e capaz de arremessar o disco original milhas adiante. Quando estreou a versão ao vivo de “Zii e Zie”, Caetano proporcionou seu melhor show em muito tempo, melhor mesmo que “Cê Ao Vivo”.

 

 

Com a abertura de “A Voz do Morto”, canção que ele gravou com os Mutantes em 1968, entremeada por citações de “Kuduro”, já ficava claro que ele estava disposto a revolver seu passado com menos cerimônia que no registro ao vivo anterior. Vêm então, brejeiras e faceiras, “Trem das Cores” (1979), “Maria Bethânia” (1971), “Irene” (1969), “Aquele Frevo Axé” (1998, gravada originalmente por Gal Costa), “Não Identificado” (1969) e “Eu Sou Neguinha?” (1987), além do resgate de um tango gravado por Carlos Gardel (“Volver”) e “Força Estranha”, de Roberto e Erasmo Carlos.

 

 

 

Mais dois anos e o último e melancólico capítulo da trilogia chega em “Abraçaço” (2012). Menos vigoroso que “Cê”, menos triste que “Zii e Zie”, mais conformado dentro de uma lógica de adequação diante do mundo e de sua mecânica rapidíssima, Caetano aparece ainda querendo briga estética ao bradar “A Bossa Nova É Foda”, numa canção pobre, mas razoável. Assim também é “Um Comunista”, sobre um tema que merecia algo melhor, dadas as idas e vindas do tempo e de Caetano sobre as questões de ordem política, cultural e ideológica que tanto nortearam sua obra. Mesmo assim, há derrapadas enormes como “Funk Melódico” ou na faixa-título, apontando para um padrão em seus discos mais recentes, dominados por canções esquecíveis. O que novamente nos leva para a transposição no palco. Com “Abraçaço Ao Vivo”, Caetano encerrou dignamente seu tempo com a Banda Cê. Seu show novamente amplia a ideia central e a contextualiza. Uma nova e saudável prática se repete, a de gravar canções que ficaram famosas em vozes alheias, fazendo justiça enorme a “Reconvexo”, registrada por Maria Bethânia em 1990, “De Noite Na Cama”, gravada por Erasmo Carlos em 1971, e “Mãe”, gravada por Gal Costa em 1976, finalmente registradas na voz de Caetano. “Lindeza”, “Triste Bahia”, “Eclipse Oculto”, “Alguém Cantando”, “Você Não Entende Nada” e “Tieta” são seus momentos revisitados e atualizados.

 

 

 

Sendo Caetano um compositor plural, não dá pra adivinhar qual seu próximo passo. Seja qual for, ele permanecerá um artista hábil em traduzir suas verdades para o público, que talvez tenha dificuldade em assimilá-las, tamanha a sinceridade com que Caetano as revela. De qualquer forma, seus discos ao vivo sempre foram interessantíssimos, mantendo essa regra intacta no período entre 2007 e 2014. Bem melhores que os registros originais, “Multishow Cê Ao Vivo”, “MTV Zii e Zie Ao Vivo” e “Multishow Abraçaço Ao Vivo” compõem uma “trilogia Cê” alternativa e muito mais completa, que ainda espera a descoberta do ouvinte.

 

 

*Texto originalmente publicado no Monkeybuzz em 25 de março de 2014. Link para o original aqui.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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