Emicida virou suco

 

 

Explorar e dissecar a carreira de Emicida requer entender o que é ser o brasileiro que anda pela calçada e por chão de terra batida. Este é o outro Brasil, não aquele do topo de prédio, mas o que fica em cima do morro. Irmão de Evandro, o Fióti, Leandro, o Emicida, é parte importante quando se fala de rap. Com uma carreira bem solidificada, ele também é empresário, pai e tem no coletivo e no senso de justiça social  os fundamentos da sua trajetória. Como ele mesmo diz, não é uma carreira, é uma causa, é uma causa e é nois.

 

O poder de um “é nóis” é muito maior que um “nós vamos”;  “é nóis” é pra tudo, é colar junto, encarar os corre. Senso de pertencimento para além das relações mecânicas como as dos laços sanguíneos, mas os orgânicos, aqueles de amizade e comunidade. A família que a gente escolhe. Por isso já começo com uma das cinco faixas escolhidas para o Suco de Emicida: “Nóiz”.  Faixa do disco “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui”, de 2013, “Noíz”:

É nóiz que corre no caminho do bem
Nóiz que disse é nóiz quando não virava um vintém
Nóiz, e nesse nóiz não existe um porém
Nóiz, e se não for nóiz não vai ser ninguém

Preto e favelado com uma bíblia na mão parece humanizado frente aos brancos, e é esse o Brasil do homem cordial, da elite do atraso, do cárcere a céu aberto, que coloca o pobre como cúmplice e responsável por sua pobreza. E a pobreza de espírito do magnata,  é a fonte da miséria daqueles que pegam o busão, varrem o chão e amassam o pão e  pro burguês comer. E é na união daqueles que se reconhecem só de olhar as mãos e os pés calejados e ásperos que o senso de “é noiz” é sintetizado.

 

 

Amigos são família e família é família, relações de amor, afeto, toda encrenca que vem junto, equilíbrio que chama, né?  Pai de Estela e Teresa, antes de tudo, Emicida é o Leandro,  filho de Dona Jacira. Existem Emicidas, um antes e outro depois da paternidade. E por mais que eu ame as pequenas alegrias da vida adulta, o Leandro, filho, é encantador. “Mãe”, faixa que canta a mãe de Emicida, que carrega tantas outras mães nos versos. Dona Jacira não é “apenas” a mãe de Emicida e Fióti, ela é artista  plástica, pinta, borda e tece e escreve.

“Mãe” carrega uma das letras  mais bonitas sobre a maternidade, é sobre a mãe de periferia, que, com instinto, luta, ensina e acompanha suas  crias, comemora isso e não as terceiriza. Faixa do disco “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…”, de 2015, o mesmo que tem “Passarinhos”, de uma lindeza sem tamanho, “Mãe” emociona mesmo quem é somente filho, pois é uma canção sobre aquele que reconhece os esforços de uma mulher.

“Pranto, de canto chorando, fazendo os outro rir
Não esqueci da senhora limpando o chão desses boy cuzão
Tanta humilhação não é vingança, hoje é redenção
Uma vida de mal me quer, não vi fé
Profundo ver o peso do mundo nas costa de uma mulher
Alexandre no presídio, eu pensando em suicídio
Aos oito anos, moça
De onde cê tirava força?

 

De onde Dona Jacira tirava forças? É uma pergunta que podemos fazer para tantas outras mães deste país sedimentado na desigualdade e na escravidão disfarçada na arquitetura dos lares com quarto de empregada e elevador de serviço. “Mãe” conta as grandes diferenças entre as mães, as condições sociais, o sofrimento de mães que tem que deixar suas crianças nas creches ou aos cuidados de parentes para poder pôr o leite na mamadeira. O mais arrepiante dessa canção é a citação de Dona Jacira, falando da chegada do menino Leandro.

 

“O terceiro filho nasceu: é homem
Não, ainda é menino
Miguel bebeu por três dias de alegria
Eu disse que ele viria, nasceu!
E eu nem sabia como seria
Alguém prevenia: filho é pro mundo
Não, o meu é meu”

 

E eu fico indecisa com as partes da letra que escolho colocar no texto, dá vontade de só copiar e colar. Mas fiquem com a beleza deste refrão que não precisa ser explicado

Nossas mãos ainda encaixam certo
Peço um anjo que me acompanhe
Em tudo eu via a voz de minha mãe
Em tudo eu via nóis
A sós nesse mundo incerto
Peço um anjo que me acompanhe
Em tudo eu via a voz de minha mãe
Em tudo eu via nóis

 

Licença aqui para voltar um pouco atrás da carreira do rapper.

“Doozicabraba e a Revolução Silenciosa”, lançado em 2011, é o segundo trabalho de Emicida e carrega nove faixas gravadas em uma passagem por Nova York e lançadas pelo Laboratório Fantasma. Dentre o repertório selecionei “Licença aqui”, a segunda do disco, por ter a participação de Rael e Fióti, e isso é representativo na carreira do artista: a colaboração e junção de vozes.

Licença aqui pra cantar consciência de classe:

“Falo, não, calo, irmão
Vocês só vêem anéis, nós temos calos nas mãos
Não somos iguais,
Eles querem ser famosos, nós podemos ser mais
E melhor,
Às vezes todo esse brilho é reflexo do suor
De quem mudou lares
Eles sonham com carros, nós alcançamos lugares
Vivara, Bulgari
Mas preciosos devem ser olhares
É quente
E se não puder ver a grandeza disso, só sai da frente”

 

Novamente é o “é noiz” conduzindo cada verso. E como diria Criolo:  “cantar rap nunca foi pra homem fraco”.  “Ainda ontem” vem celebrar essa força e esse senso de luta coletiva. E essa luta vem lá do comecinho, da primeira mixtape “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe…” de 2009. “Ainda ontem” é celebrar o rap como um dos estilos que tem mais colaborações. Com Rashid, Projota e Fióti a faixa canta a parceria, a força e a fidelidade do “é noiz”

Ainda ontem fiz um samba por ‘tá com gente bamba,
E tem feito disso uma profissão
Fundamento verdadeiro, fechei com os meus parceiro,
Num juramento de gratidão
Na cerimônia do chá, intera falar, a vera e ficar tranquilão
Vários moleque na febre, que a rua recebe, de braço aberto outra sessão
Freestyle é tipo oração, só se faz, não pensa
Quarenta segundos e uma missão extensa
Corpo, alma e coração em um, sentimento em comum
Dando vazão pra tal celebração
Razão pra MC’S
Com pensamento de que hoje é dia de fazer o melhor rap que eu já fiz
Um brinde a nóiz, família a rua é nóiz
Que brilha o olhar em reconhecimento aos heróis da nova geração
Um momento capital espírito, arrepio faz parte da tradição
Tive disposição e quis sair do zero”

Por ter falado em colaborações e pertencimento, “AmarElo”, o mais recente do rapper, traz as mais diversas vozes de diferentes locais de fala. É um grande presente aos mais distintos públicos. A faixa que dá nome ao disco vem celebrar com as vozes que os senhores brancos donos do poder querem manter abafadas. Com participações especiais como Zeca Pagodinho, Pabllo Vittar, Majur, Dona Onete, Jé Santiago, Papillon, MC Tha, da atriz Fernanda Montenegro, do comediante Thiago Ventura, Drik Barbosa, Tokyo Ska Paradise Orchestra, Fabiana Cozza e até Pastor Henrique Vieira e Pastoras do Rosário. Foda, né?

Escolhi “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida”, pois eu sorrio sempre ao escutar o diálogo inicial de pai e filha sobre o chocalho. Eu aposto que vocês vão sorrir. Segura essa rima

No paralelepípedo, trabalhador intrépido
O motor está no ímpeto onde começa tudo
O vento acalma o rápido, pra todo som eclético
Vitrolas cantam clássicos num belo absurdo
Metrópoles sufocam, são necrópoles que não se tocam
Então se chocam com o sonho de alguém
São assassinas de domingo a pausar tudo que é lindo
Todos que sentem isso são meus amigos, também

Essa aqui vem do fundo do meu coração (ah, ah ah)
Do mais profundo canto do meu interior
Pro mundo em decomposição (ah, ah ah)
Escrevo como quem manda cartas de amor”

 

Emicida é certamente um dos expoentes da música feita aqui. Foi um suco bem difícil de fazer, pois a obra do artista é  extensa discografia e cada letra cantada tem uma importância singular. Espero que tenham gostado, é noiz.

Ariana de Oliveira

Ariana de Oliveira é canhota de esquerda, Cientista Social, estudante de Jornalismo e comunicadora da Rádio Univates FM. Sobre preferências: vai dos clássicos aos alternativos.

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