Closer to me

 

 

Closer, do Joy Division, faz 40 anos em 2020. Celebrar a data me fez lembrar do modo como o vinil desse álbum chegou nas minhas mãos e ouvidos. Em outro texto, defendi que as letras de Ian Curtis que compõem as músicas de Closer precisam ser vistas como mais do que a expressão de dilemas individuais. O que vou contar aqui também tem esse propósito, ou seja, espero que meu relato não seja apenas idiossincrático, ou confessional, mas aponte para possíveis experiências musicais da segunda metade dos anos 80 no Brasil.

 

Closer teve uma edição brasileira sete anos depois de seu lançamento original. Inovou-se no Brasil ao incluir no álbum “Love will tear us apart”, seguindo a escolha de uma versão pirata de 1985. O vinil foi produzido em 1987 pela Eldorado, conglomerado que na época entrou em acordo com o selo Stiletto para comercializar álbuns de bandas e artistas pós punk como Nick Cave, Bauhaus, Durutti Column, Fall, Felt, A Certain Ratio, além do Joy Division. Em 1986, com a estabilização econômica trazida por um famigerado plano do governo Sarney, a indústria fonográfica prosperou. Com o rock nas alturas, mesmo bandas de pouco apelo comercial tiveram um lugar ao sol.

 

Se você morasse no Rio de Janeiro ou em São Paulo, haveria de encontrar algum lugar que vendesse esses discos. Não era o meu caso. Eu vivia em Florianópolis e muita coisa não chegava nas poucas lojas de música. Mas desde 1985 existia sim um programa de rádio chamado “Sincronia Total”, dedicado a sons alternativos. O programa era apresentado por Pena e Zeca, dois paulistas que se encantaram com a cidade que já fora chamada de Desterro. “Sincronia Total” chegou a ser diário e eu acompanhava sempre que podia.

 

Também em 1985, na esteira do impacto produzido pelo primeiro Rock in Rio, começou a ser publicada a revista Bizz. Com distribuição da Editora Abril, isso sim era algo que chegava em Florianópolis. A pauta da revista era bem ampla, indo do pop calibre Madonna até sons que faziam parte do lado B do rock. Foram muitos os exemplos de bandas sobre as quais lia na Bizz e escutava no programa de Pena e Zeca. A mesada de adolescente não permitia que eu comprasse mais de um disco por mês (se tanto) e eu dependia de amigos para acessar acervos maiores. Mas eles não incluíam o Closer.

 

Em alguma noite de escuta do “Sincronia Total” gravei em fita cassete uma sequência de músicas que incluía “Sunrise” (do New Order) e “Heart and Soul” (do Joy Division). Fiquei embasbacado com essas músicas, especialmente a segunda. Referências sobre o Joy Division haviam me chegado anteriormente por meio da Legião Urbana, banda que eu acompanhava de “perto”. Pode-se reconhecer mais nitidamente as influências dos britânicos sobre os brasileiros em uma música como “Acrilic on Canvas” (do álbum Dois, de 1986) e no modo como Renato Russo dançava (parecido, alguns diziam, com a performance de Ian Curtis). Mas escutar mesmo Joy Division eu só consegui graças ao programa de Pena e Zeca.

 

Algum tempo depois, surgiu a chance de ir a São Paulo. Era julho de 1987 e eu tinha 16 anos. Foi fascinante estar sob arranha céus no centro da cidade e acompanhar as pichações por extensões quilométricas ao longo das linhas de trem. Eu havia levado uns endereços de lojas de discos. Wop Bop, por exemplo. O mais impactante, claro, foi conhecer as assim chamadas “Galerias do Rock”, então tomadas basicamente por lojas de discos. Não tinha muito dinheiro e o que economizara serviu para comprar três ou quatro discos na Baratos Afins, loja (e gravadora independente) que existe até hoje.

 

Um dos vinis, o único de uma banda estrangeira, era Closer. É bem provável que para essa escolha, além da gravação originada do “Sincronia Total” e das referências via Legião, tenha contado a publicação de uma resenha sobre o álbum do Joy Division na Bizz. A resenha, escrita por Celso Pucci (além de jornalista, guitarrista em bandas como Verminose, Fellini e Voluntários da Pátria), foi divulgada na seção “Discoteca Básica” do número 24 da revista, exatamente de julho de 1987. Lembro mais da fitinha cassete do que da resenha. E lembro também de ter voltado no ônibus para Florianópolis com os discos no colo, temendo que em outro lugar não suportassem as 12 horas da viagem…

 

O que certamente não vou lembrar é quantas vezes Closer esteve sob a agulha do toca-discos do “três em um” Sharp que existia em minha casa. Não foram poucas. Em algum momento, tive acesso a fotocópias do livro da coleção Rei Lagarto (da editora portuguesa Assírio & Alvim) com as letras originais e traduzidas de muitas das músicas do Joy Division. Graças a algum amigo que me emprestou o vinil, gravei em fita cassete o Unknown Pleasures (cuja edição brasileira saiu em 1988). Pena e Zeca prestavam um serviço de utilidade pública: transpunham para fitas cassetes o seu acervo de vinis. Encomendei o Still, que trazia músicas que não haviam entrado nos dois discos de estúdio, além de registros de shows. Enfim, overdoses de Joy Division, direto na veia, em um coquetel que incluía outras bandas, como The Cure, lembrado no título deste relato (“Close to me” é uma das faixas mais conhecidas de The Head on the Door, de 1985).

 

Uma coisa curiosa do vinil é que não havia indicações de “lado”. Ou seja, não era possível saber qual era o lado 1 e qual era o lado 2. Nem a capa, nem o selo do disco traziam essa informação. O encarte que incluía o nome das faixas apenas as distribuía em suas duas faces. Eu sempre escutava o vinil achando que “Heart and Soul” era a primeira faixa do álbum. Provavelmente porque essa era a primeira música do Joy Division que eu havia conhecido. Aprendi a distinguir os lados pela espessura das faixas no vinil. A espessura de “Heart and Soul” não era muito diferente de “Atrocity Exhibition”, a primeira música do outro lado. Mas sua sucessora, “Isolation”, era bem mais curta que “Twenty Four Hours”, que vinha depois de “Heart and Soul”. Não tinha erro.

 

Só muito tempo depois descobri que escutava Closer com os lados trocados. Acho que esse equívoco teve consequências na forma de assimilar o álbum. Na minha escuta, vinha primeiro o lado que trazia a maioria das faixas que apontavam para o que seria, em uma leitura que contesto, a direção em que a banda estava indo. Isso incluía “Love will tear us apart”, que deixava de ser a última faixa do álbum para ficar no seu miolo. E assim o que seria mais “novo” ficava mergulhado no mais “antigo”. Eu virava o vinil e colocava “Atrocity Exhibition”. Dessa maneira, para mim, o disco terminava com “A Means to an End”. O que fazia todo o sentido, pois a música parece “morrer” ao desacelerar em sua parte final. E morte é certamente algo que Closer exala, a começar por sua capa.

 

Mas cá estou contando uma história sobra a vida nos anos 80. Acho que essa história diz algo sobre o que era curtir música sem poder dar play em streamings, sem poder ter a internet para acessar as letras. Tudo dava mais trabalho e tudo levava mais tempo. O que, por outro lado, permitia sorver com mais vagar e, talvez, intensidade o que nos circundava. Acho que essa história também fala sobre periferias e centros. O Brasil como periferia do pós punk que o Joy Division representava. Florianópolis como periferia na relação com São Paulo e Rio. No entanto, esses polos se conectavam por meio de viagens, literais e figuradas. Nisso, mundos imprevistos se abriam. Pra isso, e não é pouco, serve a música.

 

Texto dedicado a Pena e Zeca, produtores do inesquecível “Sincronia Total”

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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