“Songs From The Big Chair”, 35 anos

 

 

 

Dentre todos os ensinamentos que recebemos na Faculdade de História, talvez o mais importante seja que as décadas, séculos, demais intervalos fixos de tempo, não têm, necessariamente, um número fixo de tempo. Vou explicar. Um século não tem cem anos, uma década não tem dez anos. São os fatos que marcam a passagem do tempo, não a virada do calendário. Vamos ter como exemplo, o início do século 20. Não aconteceu em 1901, como diria a Matemática. A História analisa o transcorrer do tempo pelos fatos e eventos que surgem, portanto, não seria exagero dizer que o início do século 20 está em algum lugar entre o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914 e a Revolução Russa, em 1917. São eventos que mudaram o curso da história do planeta, que dispuseram novas linhas divisórias, que deram origem a novos tempos. Sendo assim, eu uso esta liberdade para dizer que a década de 1980, em termos musicais, não começou em 1981, mas, muito provavelmente, em 1982, com o lançamento de “Thriller”, de Michael Jackson e que, este álbum, deu origem a padrões pop-radiofônicos que não existiam até então. Sendo assim, “Songs From The Big Chair” tem uma aderência muito maior e justificada a este novo padrão e, sim, é um trabalho tipicamente oitentista, ainda que tenha traços que costumam ser ignorados pela maioria. E ele está fazendo 35 anos de idade, gente.

 

Não quero dizer que “Songs From The Big Chair” tem uma relação, digamos, estética, com “Thriller”, mas é um álbum inserido neste contexto pop oitentista, que o trabalho de Michael Jackson expressou tão bem. Ele contem três canções extremamente radiofônicas – “Shout”, “Everybody Wants To Rule The World”, “Head Over Heels” – não por acaso, hits mundiais do álbum, responsáveis por lançar a dupla inglesa a um novo patamar. Curt Smith e Roland Orzabal já tinham lançado um disco, o ótimo “The Hurting”, em 1983. Ainda que seja um trabalho destacado em meio ao contexto que surgiu – o pós-punk inglês – “The Hurting” é muito mais tecnopop e afeito a uma interpretação “alternativa” do que “Songs From The Big Chair”. O hit “Pale Shelter”, por exemplo, ainda que seja inegavelmente eficiente como canção pop, é menos fluente e expressivo que a trinca matadora que viria dois anos depois. E ele é o único flerte do Tears For Fears com o pop em “The Hurting”. A dupla certamente decidiu mover-se em direção a ares diferentes no segundo disco.

 

Se há algo, entretanto, que une os dois trabalhos, é um certo conceito que a dupla apresentou em seu início de carreira. “The Hurting” é, como o nome já diz, um disco sobre fragilidade e vulnerabilidade diante do mundo – a ponto de doer, machucar. As canções são cheias de teclados – cortesia do “terceiro Tears For Fears”, Ian Stanley – e fotografam com precisão o que Orzabal e Smith queriam dizer sobre viver num mundo estranho e perigoso como o planeta Terra de 1983. Pois bem, toda essa angústia e dor são alividas em “Songs From The Big Chair”, que pega emprestado muito da Teoria do Grito Primal, desenvolvida pelo psicólogo americano Arthur Janov, para servir como um conceito norteador de suas canções. Janov, que já tratara pessoalmente de John Lennon e influenciou diretamente o soberbo álbum “Plastic Ono Band”, de 1969, dizia – ele faleceu em 2017 – que era necessário emitir um grito para aliviar a mente e o corpo diante de tanta dor e sofrimento recebidos diariamente. Se Lennon fazia isso diretamente em seu álbum, efetivamente emitindo o grito primal de Janov, o Tears For Fears, numa outra abordagem, conclamava o ouvinte a gritar com sua emblemática “Shout”, a faixa de abertura de “Songs From The Big Chair”, que teria uma tradução livre como “Canções do Divã”.

 

“Shout”, mesmo diante se seus seis minutos de duração, entrou nas paradas de sucesso planetárias. Tem quase 100 milhões de streams no Spotify e é uma obra de engenharia musical soberba. Ele é quase inteiramente um refrão de uma só palavra, com instrumental que oscila entre percussão sintética, bateria real, teclados e a excelente guitarra de Orzabal, responsável por ótimos solos ao longo do disco. Chris Hughes, o bateria do grupo, é também um produtor inspirado, capaz de obter uma interessante mistura de gelo e fogo em vários momentos do álbum, mas talvez seja em “Shout” e na matadora não-balada “The Working Hour” – com saxofone de Mel Collins – que ele se sai melhor.

 

“Head Over Heels” é outro belo hit pianístico do álbum. O clipe mostrava a dupla numa biblioteca, interagindo com os frequentadores e um macaco, questionando a fragilidade do conhecimento naquele tempo e falando sobre como as coisas podem mudar de um minuto para o outro. Mesmo que “Songs From The Big Chair” tenha hits com ótima performance nas paradas mundiais desde sempre, ele tem uma unidade conceitual e sonora. As canções têm pistas e ganchos que as unem entre si. “Broken” tem parentesco com “I Believe”, que também tem semelhanças sutis com “The Working Hour” e tudo é meio ao vivo, meio em estúdio, como se fosse uma brincadeira de gato e rato sonora.

 

Mas, se há algo em “Songs…” que marcou o tempo, a dupla e a própria música pop planetária é a majestade sonora que atende pelo nome de “Everybody Wants To Rule The World”, um verdadeiro manifesto existencial de diferenças entre desejos, vida real e inserção na sociedade em forma de canção pop perfeita, dourada, grudenta e imorredoura. Curt Smith canta com voz de anjo, enquanto Orzabal, com voz mais grave e peculiar, pontua aqui e ali. A bateria de Hughes vai num ritmo bate-estaca, complementada pelo teclado de Stanley, que também pontua a melodia. A harmonia é total, tudo é lindo e orgânico, enquanto os dois solos de guitarra que habitam na canção a modificam e levam ao mesmo lugar, num movimento lindamente desconcertante, sendo que o último dos solos acompanha a faixa até o fim, num belíssimo fade out.

 

“Everybody Wants To Rule The World” é tão plural que já serviu de abertura de filme – o lindo “Peter’s Friends”, de Kenneth Brannagh – virou cover nas mãos de artistas tão distintos quando Lorde e Weezer e até foi cantada em karaoke pela atriz Portia Doubleday, a Angela de “Mr Robot” num dos episódios da segunda temporada da série que revelou o ator Rami Malek. É, portanto, um dos grandes momentos da música popular mundial em todos os tempos, não só pela pluralidade como pela urgência de sua letra, atemporal e universal.

 

“Songs From The Big Chair” é um álbum dourado e belo. É um dos mais fortes e confiáveis representantes do pop perfeito na década de 1980. Não que tudo feito naquele tempo seja perfeito – como dizem muitos – mas, se há algo que tenha esta qualidade e merece o termo, repito, este é o disco mais fácil e universal a ser escolhido para tal.

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on ““Songs From The Big Chair”, 35 anos

  • 1 de março de 2020 em 00:52
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    Puxa, agora fiquei curioso sobre sua avaliação do álbum “Seeds of love” , que dividiu opiniões da crítica ao buscar referências nos álbuns psicodélicos dos Beatles, sobretudo Sg Peppers.

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    • 1 de março de 2020 em 08:10
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      É um bom disco, mas é inferior aos dois primeiros do TFF.

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