Ringo Starr e a microhistória

 

No dia 25 de outubro, conhecido também como sexta-feira que vem, Ringo Starr vai lançar o seu vigésimo disco solo, “What’s My Name?”.  O álbum já vazou na Internet desde anteontem mas só publicaremos a resenha quando for possível – oficialmente – a audição dele pelo maior número de pessoas. Por enquanto, ressuscito este texto de oito anos atrás, fazendo reflexão sobre o papel de Ringo nos Beatles e em sua carreira solo. Boa leitura!

 

 

Você sabe o que é microhistória? Eu te conto: é um gênero de pesquisa dentro do estudo da História, empreendido pelos italianos Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, cujo propósito é explicar contextos sociais, econômicos, políticos, entre outros, a partir da observação mais reduzida possível. Grosso modo, é como definir toda uma sociedade ou grandes aspectos dela a partir do estudo de um grupo reduzido de pessoas ou mesmo de um indivíduo. Foi nesse conceito que pensei durante todo do show de Ringo Starr e sua All-Starr Band no palco do Citibank Hall lotado (15/11/11). Senão vejamos.

 

Ringo é, por definição, um coadjuvante. Essencialmente, o baterista, por mais que seja imprescindível para uma banda de rock existir, é uma figura que tende ao status de eminência parda. Salvo raras exceções, o sujeito que fica lá atrás espancando os tambores é um cara menos importante que o guitarrista principal ou o vocalista. Ringo sempre soube disso e, desde o início dos Beatles, pediu para que seu set de bateria fosse colocado num plano mais elevado, sob a desculpa de que queria ver a platéia. Bem, na verdade, Richard Starkey queria ser visto também. Mesmo assim, ele nunca venceu a condição de Beatle menos importante, chegando a ser detonado por muita gente que duvidava de seu talento como baterista.

 

Porém, Ringo sempre foi um excelente músico e sua presença foi decisiva para que os Beatles fizessem a revolução sonora que se viu a partir de 1965. Até então, o lance era ditar o ritmo das levadas, algo em que, diga-se de passagem, ele é um dos melhores de todos os tempos. Poucos bateristas são tão precisos e capazes de segurar um andamento como Ringo. Para os detratores da criatividade do homem, basta uma audição mais cuidadosa de canções como “A Day In The Life”, “Strawberry Fields Forever”, “Taxman”, “Tomorrow Never Knows”, “I Want You”, “Sexy Sadie”, “Helter Skelter”, enfim, um monte de músicas dos Beatles que têm a centelha de inventividade de Ringo, em criações só dele.

 

O “detalhe” é que Ringo estava numa banda liderada por dois gênios, cada um a seu modo, que roubavam toda a atenção, além da presença discreta, porém marcante, de um cara como George Harrison. Restava a Ringo ser o “boa praça”, o “engraçado”. Pois bem, os Beatles acabaram em 1970 e cada um deu início à sua respectiva carreira solo. Se analisarmos as trajetórias solo de John, Paul, George e Ringo, elas são, como diriam os professores de geometria, opostas pelo vértice. A origem é comum e inescapável, mas os rumos foram distintos.

 

Paul montou os Wings, desmontou, gravou discos corretíssimos, alguns clássicos e sempre privilegiou a melodia. John montou a Plastic Ono Band, colocou pra fora seus demônios, desmontou a banda e pariu outros clássicos. George gravou aquele que pode ser o melhor disco de um ex-Beatle, “All Things Must Pass”, além de outros trabalhos muito bonitos, se engajou nas causas sociais, colecionou amigos e carrões. Nosso amigo Ringo gravou um belo tributo às canções que seus pais gostavam em “Sentimental Journey”, com produção de Quincy Jones, além de um belo disco em 1973, chamado simplesmente “Ringo”, com participação de seus ex-companheiros de banda e um monte de amigos. A vida em conjunto nos 60’s, no entanto, sempre os manteve juntos e em termos de comparação, novamente Ringo perdeu para seus ex-colegas.

 

Na verdade é injusto dizer que “Beaucups Of Blues” e “Goodnight Vienna” são discos discretos, mas Ringo só voltou a gravar álbuns interessantes nos anos 90, com “Time Takes Time” (1992) e “Vertical Man” (1998). Depois vieram os bons “Ringorama” (2003), “Liverpool 8” (2008) e o cortante “Y Not” (2010), que traz parceria com Van Dyke Parks, o letrista de “Smile”, dos Beach Boys, além de Paul McCartney e Joss Stone. Entretanto, o que mantém Ringo em forma e nos palcos é sua All Starr Band. O conceito de uma banda rotativa, liderada por Ringo, pertence ao produtor David Fishof. Com experiência de sobra no ramo do showbiz, Fishof apresentou a idéia a Ringo no distante ano de 1989, chegando a produzir shows da banda até 2003. O próprio conceito é uma vingança com as chamadas “primeiras divisões do rock”.

 

Se Ringo foi coadjuvante nos Beatles, é possível dizer que, salvo poucas exceções, todos os músicos que participaram e participam da All Starr Band são, de alguma forma, coadjuvantes do próprio rock’n’roll. Gente que figurou em bandas de sucesso, mas não era o mais carismático de seus integrantes; gente que emplacou um ou dois hits em toda a carreira; gente que estava no mais profundo ostracismo, gente talentosa e injustiçada, enfim, um bando de músicos com muita vontade de subir no palco e acertar contas com a vida, com o destino e tudo mais. Não é brincadeira, gente, tudo isso é muito sério.

 

Imagine Peter Frampton. O cara dominou o mundo em 1976/78. Era jovem, bonito e talentoso o suficiente para ir adiante com seu “Frampton Comes Alive”, um dos discos ao vivo mais famosos e vendidos da história do rock. Que nada. Frampton caiu no ostracismo ao longo das décadas de 1980/90, gravando discos esporádicos e integrou a All Starr Band em 1997. Gente como Todd Rundgren, Billy Preston, Randy Bachman, Felix Cavaliere, Nils Lofgren, Simon Kirke, Eric Carmen, Joe Walsh, Clarence Clemmons, Greg Lake, Howard Jones, Colin Hay, entre muitos outros sujeitos das segundas e terceiras divisões do rock, já estiveram nas fileiras do projeto. Mais impressionante é ver que gente graúda como Levon Helm e Rick Danko (The Band), Jack Bruce (Cream), John Entwistle (The Who) e Dr.John também já bateram ponto por lá. Explica-se: Ringo é, de fato, um boa praça e todo mundo parece gostar muito dele.

 

O que depreendemos de tudo isso? Claro que a All Starr Band, cujo mote é que “todos os participantes têm seu momento de estrela”, é uma formação para fazer justiça e se divertir. A atual encarnação, apesar de ser a mais fraca, também segue esse lema e traz o baterista Greg Bissonette, os guitarristas Wally Palmar (The Romantics) e Rick Derringer (The McCoys); os tecladistas Edgar Winter (solo) e Gary Wright (Spooky tooth, solo); o baixista Richard Page (Mr.Mister) e o percussionista multitarefas Mark Rivera. Cada um deles assume a função de frontman ao longo da noite e pequenos lados-B são enfileirados no palco para a lembrança fugidia de uns e outros, na base do “ah, eu conheço essa música!”. A sensação vem em “Talking In Your Sleep” e “What I Like About You” (Romantics), “Hang On Sloopy” (The McCoys), “Dream Weaver” e “My Love Is Alive” (Gary Wright) e na colossal “Free Ride”, de Edgar Winter, que também estraçalha tudo em “Frankstein”. Mesmo as babinhas “Kyrie” e “Broken Wings”, do Mr. Mister, não fazem feio – dentro do contexto.

 

A estrela (trocadilho não-intencional, vejam) é mesmo Ringo, que está em forma do alto dos seus 71 anos. Ele usa e abusa do carisma nato e conquista a platéia em questão de segundos. Manda bala em canções dos Beatles – “I Wanna Be Your Man”, “Act Naturally”, “Boys”, “Yellow Submarine” e “With A Little Help From My Friends”, que vem emendada com “Give Peace A Chance”, de um tal de John Lennon. Versões particularmente legais de “Photograph”, jóia composta por George Harrison em 1973, e da cover dos tempos de Liverpool para “Honey Don’t”, de Carl Perkins, atestam a diversão na platéia e no palco.

 

Um show de coadjuvantes, gente que viu de perto a fama e a fortuna do rock, que perdeu bondes, tomou decisões erradas, pensou uma coisa e fez outra, viu o bonde virar a esquina, gente que se tornou “has been”, enfim, gente que deu a volta por cima, fazendo o que mais gosta, talvez salvando da lama rasteira do showbiz uma lição de persistência, perseverança e autoconfiança. Posso estar equivocado, mas Ringo Starr e sua All Starr Band são exatamente isso. É justo que ela exista e leve multidões formadas por gente que curtiu tudo isso há tempos.

 

 

Texto originalmente publicado no Scream & Yell, em 22 de novembro de 2011.

Leia o original aqui

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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