Finalmente o disco quádruplo de Nando Reis
Nando Reis – Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo
132′, 30 faixas
(Relicário)

Depois de vários meses lançando as trinta canções que compõem este registro quádruplo “Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo” em LPs, finalmente é possível avaliar esta nova safra de Nando Reis. Na verdade, só há poucos dias a totalidade delas ficou disponível nas plataformas de streaming. Nando, num movimento arrojado para os dias atuais, primeiro disponibilizou o álbum em formato físico, num box disponível apenas em seu site, com o valor de R$ 590,00, além da possibilidade de adquirir os LPs individualmente, cada um a R$ 200,00, intitulados “Uma”, “Estrela” e “Misteriosa”, sendo “Revelará o Segredo” um álbum-bônus, disponível apenas para quem comprar o tal box. É o retorno do cantor e compositor paulista ao trabalho autoral após “Jardim-Pomar”, de 2016. No meio-tempo, Nando colaborou com a dupla Anavitória, a cantora Pitty e com Gal Costa e Gilberto Gil, além de lançar um álbum com canções famosas na voz de Roberto Carlos. O tamanho do lançamento é um indicativo do quanto ele presa o trabalho autoral, o que é bom.
“Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo” foi batizado por causa da afinidade de Nando com a obra do desenhista belga Hergé, e conta com a produção do americano Barrett Martin, que já colaborou outras vezes com Nando ao longo dos últimos vinte anos. Martin também toca bateria na banda que foi arregimentada para as gravações e para a turnê que está em andamento. Além dele, Peter Buck, ex-REM, também está envolvido, além de Felipe Cambraia (baixo e co-produção), Walter Villaça (guitarra) e Alex Veley (teclados). O álbum também conta com participações de outros músicos ao longo das faixas, como Mike McCready (guitarra) e Matt Cameron (bateria), ambos integrantes do Pearl Jam. Duff McKagan (baixo), do Guns N’ Roses; Sebastião Reis (violão de 12 cordas), da banda Colomy; e Krist Novoselic (baixo), ex-integrante do Nirvana também estão presentes e isso acentua o tom folk rock que a maioria das composições de Nando assumem, ainda que, em alguns momentos, ele faça discretas incursões pelo samba-rock ou pelas baladas mais confessionais.
Nando já havia emplacado composições quando fazia parte dos Titãs mas foi com sua carreira solo, iniciada há cerca de trinta anos, que ele encontrou uma persona como compositor. Esta verve emocional folk-rock é o formato no qual ele se vê mais confortável e, ainda que isso custe um pouco de originalidade às vezes, ele já é detentor de uma marca sonora própria, especialmente por conta de sua voz, bastante peculiar e, sim, por ser capaz de escrever sobre relacionamentos e reflexões sobre a vida cotidiana com um pendor especial pela saudade e pelo que o passado fez conosco e como isso nos define no presente. Foi assim, por exemplo, em “No Recreio”, talvez sua mais bela canção, gravada pela parceira Cassia Eller há tanto tempo, e esta marca se desenvolveu com o tempo, mas não se transformou. A ela, Nando adicionou mais elementos e, é possível dizer, que ele é um compositor mais diverso, com uma certa evolução estética. De certa forma, este álbum quádruplo é uma afirmação dessa carreira e desse talento, algo que, tristemente, se tornou raro no ambiente que existe hoje na música pop brasileira.
O que nos ela a outro detalhe: é difícil pensar em quem irá se interessar por este lançamento além de seu público. Ainda que algumas canções tenham brilho, a maioria delas está num patamar regular que, por conta de vários fatores, não tem força para ultrapassar o nicho em que o artista se encontra. Nando, porém, não parece incomodado com isso, pelo contrário – ele parece ter gravado o álbum mais para si mesmo, para dar vazão a esta verve autoral, para celebrar com seus amigos de banda e tudo que envolve este processo. E, sim, o fato de usar seu cacife como artista para subverter um pouco a lógica do mercado musical atual, é louvável. Sobre as faixas que habitam esse universo que é “Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo”, elas foram escritas entre 1988 e 2024, mas mantém uma coesão lírica que as sustenta como pertencentes ao momento atual de Nando. Há três faixas que têm tudo para pertencer ao melhor que o artista já gravou: “A Tulha”, uma das primeiras canções a serem divulgadas, é extremamente pessoal e autobiográfica, mostrando a habilidade que Nando tem quando chega a hora de falar de si, de sua trajetória pessoal e como os fatos da vida cotidiana o afetaram/transformaram. “Des-Mente” é outro ponto alto, no qual o artista assume sua relação complexa com drogas e compulsões, celebrando a sorte e a beleza de estar vivo, enquanto “Estuário”, talvez a mais bela canção presente, é uma carta de amor à esposa Vania, na qual fatos são lembrados e encadeados de forma simples e poderosa.
Há outros bons momentos ao longo das trinta faixas: “Inverso” é uma canção com um arranjo acústico bonito e bem executado, com letra de amor abstrata e existencial, enquanto “Composição” tem um simpático andamento samba-rock, algo relativamente original em meio ao que Nando já gravou. “Na Lagoa” também tem a verve folk rock pessoal, cotidiana e nostálgica, terreno que, sabemos bem, Nando tem fluência. E tem “Rhipsalis”, que também investe no binômio amor-nostalgia de forma simpática e sincera.
De uma maneira geral, o velho clichê jornalístico se aplica aqui: se fosse um álbum simples, “Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo” seria mais focado, enxuto e apontaria para uma fornada especialmente bem sucedida de Nando Reis. Mas, é possível enxergar que, mais do que isso, o artista buscou a realização pessoal de lançar essas trinta faixas do jeito que quis e pensou, livre de amarras e limitações mercadológicas vigentes. No Brasil atual, isso é um mérito e tanto.
Ouça primeiro: “A Tulha”, “Inverso”, “Des-Mente”, “Estuário”, “Composição”, “Na Lagoa”, “Rhipsalis”

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.