Tente não se apaixonar por Luna Li

 

 

Luna Li – Duality

Gênero: Rock alternativo, lo-fi

Duração: 40:47 min
Faixas: 13
Produção: Luna Li
Gravadora: AWAL

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

A vida moderna é inimiga do acaso. É tudo tão planejado e certinho – ou deveria ser – que a gente tende a ficar imuine a reações espontâneas, geralmente emocionais. Veja o meu próprio exemplo. Trabalho o dia inteiro digitando, revisando, escrevendo e pensando no que estou fazendo. Sobra espaço apenas para os reflexos mais básicos, como fome, sede, ir ao banheiro e prestar uma atenção mínima na casa, para que esta não exploda ou queime sem que eu note. O resto é rotina, rotina. Daí, quando uma canção – ah, eu ouço música incessantemente, o dia inteiro e à noite também – consegue furar o sistema e, ainda por cima, me emocionar, eu puxo o freio de mão e presto atenção. Foi o que aconteceu ontem, com “Afterglow”, contida no primeiro álbum da cantora e compositora canadense Luna Li. Eu fui arrancado da rotina, intimado a prestar atenção. Quando me dei conta, estava emocionado com a melodia, o arranjo lo-fi grandiloquente – um paradoxo, mas real – e os vocais da menina, que tem ascendência coreana e 25 anos de idade. Que lindeza, que sensibilidade, que doçura. Parei tudo, fui catar o que havia disponível sobre Luna Li para resenhar o seu álbum, “Duality”. Sendo assim, aqui está o que deve ser dito.

 

 

Luna se chama Hannah Bussere Kim e está nesta vida musical há menos que cinco anos. Cresceu num lar em que ouvir discos era hábito frequente e chegou até a frequentar faculdade de música. Toca guitarra, baixo, piano, harpa e teclados, de modo a ser capaz de compor e executar suas criações dentro do próprio quarto, como é cada vez mais usual com a tecnologia disponível hoje. Mas, sabemos bem, não basta ter os recursos se não há talento ou sensibilidade em níveis dignos e Luna tem de sobra. Ela faz parte de um grupo de artistas femininas novíssimas – Jay Som, Mitski, Japanese Breakfast, The Weather Station, que prezam o pop clássico e bem feito em vez de entregá-lo sem resistência aos timbres eletrônicos e hip-hopescos. A partir desta proposta estética, essa mulherada consegue erguer paisagens de sonho em suas canções e álbuns. É tudo muito bonito, muito derivado de sonoridades oitentistas e noventistas, no sentido Cocteau Twins do termo, que parece exercer um fascínio imenso por quase todas as representantes deste pop refinado do quarto de dormir. Mas há variações. Aqui, na estreia de Luna, você pode ouvir ecos de Air, Beach Boys, ELO, Stereolab e mesmo Tame Impala e várias outras influências de gente que preza a melodia, o arranjo e a beleza das canções.

 

 

Se há algo que chama a atenção nas treze canções do álbum é a inexistência de material fraco. Tudo aqui tem mérito, segredos e provas de talento. Arranjos, linhas melódicas, letra, jeito de cantar, tudo é muito feminino, muito moderno e muito introspectivo, visto que “Duality” é fruto do tempo passado sob distanciamento social. Além dele, Luna colocou nos streamings um adorável registro chamado “Jams EP”, no qual juntou as pequenas composições – cerca de um minuto ou menos de duração – que fez e mostrou em lives pelas redes sociais. Ali já é possível detectar a excelência da menina no ofício de criar paisagens sonoras. Seu manejo da harpa dá um toque oriental muito bonito a vários momentos do disco, algo que se identifica com sua cultura coreana sem entrar no terreno das excentricidades de mercado. A menina incorpora este traço de forma natural e espontânea, fazendo milagres ao longo do disco. Mas não é só disso que vivem as faixas de “Duality”, que têm parentesco com inúmeras referências e fiapos de memória que são cutucados pelas melodias e arranjos. Tudo é muito bonito.

 

 

“Afterglow”, a faixa que me tirou da rotina, é a melhor canção por aqui. Sua melodia é remanescente de alguma artesania baladeira setentista, mas o arranjo é de outra dimensão, tirando qualquer traço de nostalgia em nome de uma modernidade de sonho e cores no céu. E tem tudo – harpa, violinos, vocais de apoio sobrepostos – manejado por Luna como se fosse uma veterana. “Cherry Pit”, que abre o álbum, já tem um pouco de guitarras distorcidas, mas que parecem ter entrado no arranjo por acaso, terminando engolfadas pela lindeza reinante. “Trying” também é uma lindeza sob a luz da lua, delicada, erguida em vocais e pequenas gotas que pingam no teclado, numa onda de sonho acordado explodindo em violinos e palavras inseridas num pequeno caos controlado. “Alone But Not Lonely” poderia ser uma demo de canção do Air, tamanha a proximidade estética com as paisagens meio orientais que o duo francês gosta de erguer, mas, muito mais que isso, a melodia e o arranjo – que mistura violinos e guitarras pesadinhas – sacode o ouvinte e o manda prestar atenção na lindeza. Em meio a tudo isso, novamente uma atmosfera de linha temporal alternativa dos anos 1970 está presente. “What You’re Thinking” é outra belezura, dessa vez mais ancorada na melodia absolutamente grudenta, mas ouvidos atentos perceberão o arranjo maravilhoso de teclados. E absolutamente adorável é a minúscula – pouco mais de um minuto – “Misery Moon”, uma micro-balada atemporal e singela. O fecho vem com uma  impressionante e instrumental, “Lonely/Lovely”, que sintetiza tudo o que foi dito e o que ficou subentendido.

 

 

“Duality”, estreia de Luna Li, é escandalosamente belo. É uma sucessão de melodias perfeitas, surpreendentes e impressionantes. A menina já estreia com jeito de vencedora, saindo de seu quarto com um trabalho cheio de camadas, nuances, luz e noite, feito para quem ainda tem tempo de prestar atenção nas sutilezas da vida. Desde já um dos grandes discos de 2022.

 

Ouça primeiro: “Cherry Pit”, “Afterglow”, “Trying”, “Alone But Not Lonely”, “What You’re Thinking”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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