Vanessa da Mata – 15 Anos De Essa Boneca Tem Manual

 

Uma olhada mais atenta para a música nacional da década passada vai nos mostrar um boom de novas cantoras. Influenciadas por correntes mais arejadas da MPB, com olhar atento ao que se produzia no planeta à época, sensibilidade para misturar caixinhas que eram estanques até então. Por conta da cronologia – nem sempre precisa – dá pra notarmos o surgimento de Bebel Gilberto logo na virada do milênio, com “Tanto Tempo”, disco que deu um banho de loja no que a Bossa Nova nos deixou, especialmente tinturas eletrônicas e remixantes. Além dela, Maria Rita, no mesmo período, também surgiu como defensora de uma visão um pouco mais conservadora da música nacional mais tradicional. De um outro lado, com uma musicalidade mais pé no chão, mais envolta na tradição da MPB, no sentido Gal Costa/Novos Baianos do termo, surgiu Vanessa da Mata.

 

A bordo de um bom primeiro disco que não chegou a ser tão conhecido, Vanessa chegou discretamente ao mercado com uma cover – bela – de “Nossa Canção”, de Roberto e Erasmo Carlos, em 2003. Quem ouvisse o álbum, no entanto, veria que a moça tinha muito mais atributos. “Não Me Deixe Só”, por exemplo, faixa que abre o álbum, é um samba melódico e praticamente perfeito. E de autoria da própria Vanessa. Não foi surpresa quando ela surgiu um ano depois com um trabalho que considero o pai desta geração de novíssimas cantoras que vieram ao longo da década: “Essa Boneca Tem Manual”.

 

Lançado pela Sony, produzido por Liminha, este é, simplesmente, um dos melhores discos nacionais daquela década. Fluente, com composições da própria Vanessa, algumas em parceria com o próprio Liminha, além de duas versões belas – “Eu Sou Neguinha” (Caetano Veloso) e “História De Uma Gata” (Chico Buarque), o álbum consegue manter uma identidade sonora ao longo de suas composições. É uma liga que tem o reggae como inspiração onipresente, como andamento, como arranjo, mas com espaço de sobra para se mesclar com doses de samba, pop e música eletrônica. Há barulhinhos por todos os cantos, vocais de apoio bem colocados, timbres, detalhes, uma belezura. E além disso tudo, “Essa Boneca Tem Manual” rendeu alguns hits radiofônicos e novelísticos, especialmente “Ai Ai Ai”, que foi estourar cerca de um ano depois do lançamento, com direito a versão remixada e drum’n’bossa que, se quase matou o prazer de ouvir a canção, mostrou o poder de alcance dessa poesia de Vanessa.

 

O próprio título do álbum acena para um olhar feminista que se traduz nas letras de autonomia, amor e visão essencialmente femininas. Aliás, este é um dos discos mais femininos feitos no país em muito tempo. Há espaço para felicidade, realização e tristeza, tudo em questão de duas, três canções que quase encerram o assunto. A abertura, por exemplo, com “Ainda Bem”, é, simplesmente, uma das mais belas músicas sobre a felicidade de se viver junto, numa espécie de sensação equivalente a ganhar sozinho numa loteria sentimental em que o prêmio é a felicidade de se viver junto da pessoa que vai te completar: “Ainda bem que você vive comigo, porque, senão, como seria essa vida?”. É tudo terrivelmente simples e belo ao longo da canção. Mais adiante, em “Música”, Vanessa faz o caminho oposto, num arranjo dolorido como beliscão dado com a unha, com letra que dilacera o peito: “nosso sonho se perdeu no fio da vida”, mostrando uma espécie de outro lado da moeda-coração, o contrário exato do que acontece com “Ainda Bem”.

 

No meio do caminho, há espaço para verdadeiros clássicos instantâneos: “Joãozinho”, por exemplo, é uma maravilha sobre cabelos curtos e efeitos das intempéries sobre cabelos compridos, armados, encrespados, numa bela e delicada maneira de assumir identidades e emancipar-se de modelos pré-determinados. Neste mesmo caminho, a faixa-título é um pequeno tratado sobre como lidar com o sexo feminino, com jeito de história infantil e ironia, explicando o que se deve e o que não se deve fazer. Essa feminilidade também atinge níveis mais explícitos em outros momentos, especialmente em “Eu Quero Enfeitar Você” e na própria “Ai Ai Ai”, que afirmam a condição dessa mulher consciente e ciente de sua posição e luta na sociedade patriarcal. Podemos dizer que muito do que temos hoje tem neste disco seu ponto de partida.

 

Vanessa da Mata ganhou novo status após “Essa Boneca Tem Manual”, mas não chegou a igualar a perfeição deste trabalho, ainda que “Sim”, lançado em 2007, tenha feito bonito e mantido sua condição de nova força criativa da música nacional. Em seguida veio um belo álbum com canções de Tom Jobim, que, se não escapou dos clichês deste tipo de trabalho, reafirmou a graça de Vanessa como cantora. Há poucos dias ela soltou música inédita se prepara para lançar um novo álbum até o fim do ano. Dá pra dizer, sem dúvida, que Vanessa da Mata ainda é uma das nossas grandes cantoras e compositoras.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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