Tributo para quem detesta Milton Nascimento

 

 

 

 

ReNascimento – Vários
42′, 12 faixas
(Universal)

1 out of 5 stars (1 / 5)

 

 

 

 

Alguns discos-tributo parecem feitos por gente que detesta a obra do homenageado. Sim, esta pode ser uma afirmação polêmica e, dependendo de quem faz, mal intencionada. Afirmo que não me incluo na segunda opção, visto que ouço, amo e respeito a obra de Milton Nascimento desde que ouvi sua versão de “Paisagem da Janela”, presente em seu álbum “Ao Vivo”, lançado em 1983. Houve tempo em minha vida que “Clube da Esquina 2”, a faixa presente no hoje badaladíssimo “Clube da Esquina”, lançado em 1972, era um hino informal das minhas viagens estáticas por uma vida mais simples, bem longe de onde eu morava. Já sorri e chorei ouvindo canções gravadas por ele, então, posso afirmar que o respeito que tenho por sua obra é imenso. Em “ReNascimento”, a ideia é mostrar como esta trajetória de cinco décadas pode ser apropriada por novos artistas e, a partir daí, novo público, com a intenção de perpetuar a presença de Bituca. O álbum vem a reboque do documentário “Bituca”, que a gente já resenhou por aqui e que consideramos uma enorme oportunidade desperdiçada de contar a história de Milton como um ser humano, optando por sacralizá-lo ao extremo, conferindo-lhe um status idealizado e imaculado. Aqui o equívoco é outro – como fazer com que outros artistas, com backgrounds estéticos bem diferentes, consigam entender e reprocessar as canções de alguém como Milton? Difícil.

 

A ideia aqui não é soar nostálgico. Eu adoraria ouvir versões novas e pertinentes para clássicos da lavra de Milton, mas não é o caso em “ReNascimento”. São doze faixas, em sua maioria, clássicos da música brasileira, pop e popular. Não custa lembrar que Milton é/foi um dos maiores cantores de todos os tempos em seu auge, não só brasileiro, mas universal. Sua voz foi assombrosa, impressionante, capaz de atingir graves e agudos com facilidade impressionante. Soava como pássaro, deus, o tempo ou qualquer outra entidade de outra esfera impossível. Mesmo apenas com solfejos ou vocalises, muitas vezes ele cantou mais que alguém que interpretasse a mais poderosa das letras. Aí estão gravações como “Os Escravos de Jó” ou a já mencionada “Clube da Esquina 2” para provar. Mas, voltando ao disco, a coisa aqui desanda até com artistas inegavelmente talentosos, como Liniker ou o trio Os Garotin, que não conseguiram captar a essência das gravações originais, sua alma, sua natureza indissociável.

 

Aproveitando os dois como exemplos iniciais, temos “Encontros e Despedidas” e “Bola de Meia, Bola de Gude”. A primeira, de 1985, faixa-título do álbum que Milton lançou naquele ano, ressurge com vocais muito mais fortes do que poderíamos esperar de alguém que reflete sobre perdas e ganhos na vida em meio ao passar do tempo. Quem espreita os modos do tempo e conclui sua volatilidade, não pode ser alguém tão confiante como a voz de Liniker sugere aqui e a cantora dá tudo para mostrar seu ponto de vista. O trio de São Gonçalo, pega a faixa de 1980, presente no álbum “14 Bis II”, da banda mineira e só gravada por Milton em 1988, em “Miltons”. O original é uma canção sobre prestar atenção à alegria vital e jovem que está em todos nós e, a partir dela, se abastecer com força, naturalidade e indignação diante das coisas. O verso “Qualquer sacanagem ser coisa normal” causou burburinho no Brasil da ditadura civil-militar. Os Garotin injetam sua malandragem funk moderna em sua versão e, por mais que tenham talento de sobra, não conseguem captar essa constatação pura e necessária que a letra – de Fernando Brant – sugere. Mesmo assim, o resultado desta faixa é melhor que a de Liniker, talvez pela leveza da interpretação dos rapazes. Outra faixa aceitável é, justamente, “Clube da Esquina 2”, que surge aqui com interpretação da dupla OUTROEU. Ainda que a veia technopop contemporânea dos sujeitos seja importante, eles a deixam de lado para, em meio a um arranjo delicado de piano, teclados e guitarras, emoldurar com delicadeza a versão letrada da canção, que só saiu no álbum “A Via Láctea”, de Lô Borges, lançado em 1979.

 

Há também interpretações que não fazem qualquer diferença. É o caso da portuguesa MARO, com a sublime “Cais”. Nada vem ou vai em meio aos contornos fadísticos que ela dá ao original de 1972, mas não chega a irritar. Também é o caso de “Anima”, nas mãos de Tim Bernardes, Zé Ibarra e Dora Morlenbaum, que contém os arroubos e fazem o simples, resgatando uma ótima canção, cujo original é de 1982. Os verdadeiros atentados contra a obra de Milton, no entanto, não tardam a chegar. Logo de cara, “Travessia”, talvez a faixa mais conhecida de Milton, é interpretada por … Sandy. Sim, é isso mesmo. Não precisamos dizer mais nada, certo? Lucas Mamede se vê às voltas com um arranjo que busca flexilibizar o original de “Tudo Que Você Podia Ser”, numa batidinha neo-forró que dá nos nervos. Além disso, comete o erro de introduzir sua interpretação com um verso de “Ponta de Areia”, uma das canções mais belas de Milton, que é reduzida apenas a isso, uma citação sem sentido, visto que são canções totalmente diferentes. Tuca Oliveira pega outra canção conhecidíssima, “Canção da América”, e até tenta respeitar o tom solene do original, mas sua voz é extremamente curta e sem expressão. “Paula e Bebeto”, uma lindeza singela em seu original, aparece aqui como um rockão exagerado, na voz de Johnny Hooker e Kell Smith. Horror total. “Lua Girou”, com Agnes Nunes, é outro equívoco, com vocais numa escola à la The Voice Brasil, que tira toda a magia folclórica do original. E “A Festa”, canção menor de Milton, cuja melodia decalca “La Bamba”, surge com voz baby talking de Clarissa, num equívoco que já começa pela escolha de uma canção tão sem graça para um tributo como esse. E “Canção do Sal”, algo tão forte sobre o trabalho duro e a forja de caráter a partir dele, surge como se fosse uma canção de ninar bebês reborn na voz de Analu.

 

Bem, eu adoraria elogiar loucamente “ReNascimento”, mas, infelizmente, trata-se de um equívoco. Espero que ninguém nunca venha a pensar nessas interpretações como sendo dignas de versões realmente relevantes de Milton Nascimento. Se você quer ouvir outras vozes tratando suas músicas como dignidade, vá atrás de registros de Elis Regina, Nana Caymmi, Lô Borges, Beto Guedes ou mesmo dos Paralamas do Sucesso, cuja versão para “Nada Será Como Antes”, é bem bacaninha.

 

 

Ouça primeiro: anote os nomes das faixas e procure os originais. Conselho de amigo.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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