Três filmes de cometas destruidores

 

 

Se você está conectado nas redes sociais, não dá pra evitar: todo mundo – até quem não viu – está falando sobre “Não Olhe Para Cima”, filme que a Netflix disponibilizou para streaming mundial na última semana de dezembro. O longa, dirigido, escrito e produzido por Adam McKay (de “Vice”, “Big Short” e “Homem Formiga”) trouxe um questionamento interessante sobre o fim do mundo: como seria se algumas pessoas soubessem que o fim está próximo e tentassem alertar sobre o perigo iminente e ninguém desse a importância devida? Eu, que sou um fã de ficção científica, não me lembro de uma distopia mais severamente cruel. Talvez a premissa de “Matrix” chegue perto, a de não sermos capazes de enxergar a ruína à nossa volta porque estamos distraídos demais para prestar atenção no que é terrível e óbvio, mas não é totalmente satisfatório. Em “Não Olhe…” o tempo é o presente e nele estamos alienados e entretidos com dispositivos de valor duvidoso, informação em tempo real, distorções da realidade, sem falar no espaço aberto para toda sorte de picaretas e oportunistas atravessarem nosso caminho com várias inutilidades necessárias. Num mundo assim fica muito difícil para o astrônomo decadente vivido por Leonardo di Caprio e pela doutoranda entediada de Jennifer Lawrence conseguirem a atenção da audiência. Eles não têm mídia training, não são instagramáveis ou simpáticos. Eles só querem nos avisar do fim do mundo porque detectaram um cometa gigante em rota de colisão com a Terra e anteciparam o dia do impacto em algum lugar dali a seis meses. Pouco resta a fazer.

 

Claro que tudo é uma metáfora para a nossa ruína atual. Mas nem sempre o cenário foi esse. Se voltarmos pouco tempo, diretamente para 1999, veremos dois filmes irmãos, com roteiros quase idênticos, ambos tratando sobre o fim do mundo por conta da aproximação de um cometa gigante, “Armaggedon” e “Impacto Profundo” dominaram as bilheterias e telonas mundiais naquele ano e dividiram a crítica sobre como o tema foi abordado. Alguns defendiam que “Impacto Profundo”, dirigido por Mimi Leder e produzido pela Dreamworks, tinha um approach mais realista, com direito a Morgan Freeman como um presidente americano muito azarado, tendo que lidar com intrigas palacianas, uma mídia inclemente em busca de furos de reportagem e a sagacidade de dois estudantes que descobrem o cometa por acaso, durante uma vigília de um clube de astronomia. Dali pra frente, tudo começa a desmoronar, até que o heroísmo americano de praxe tem a hora e a vez para salvar o mundo numa missão espacial chamada Messias, liderada por um veterano astronauta, vivido pelo sempre genial Robert Duvall, que bate no pedregulho espacial horas antes dele se arrebentar contra o planeta, não sem antes ter causado bastante encrenca e destruição.

 

Se “Impacto Profundo” tinha alguma pretensão de flertar com a realidade, “Armageddon”, dirigido por Michael Bay e produzido por Jerry Bruckheimer, é uma ótima oportunidade para tacar um sorvete na testa. Aqui o asteroide está a poucos dias de distância da Terra – o que seria, no mínimo, um sinal de que ninguém olha o céu – e pouco há para fazer a não ser mandar um time de … perfuradores de campos de petróleo para o espaço, liderados por Bruce Willis e tendo Ben Affleck e Liv Tyler como par romântico. Se há algo que salva o filme do mais absoluto desastre é a presença de um porra louca como Steve Buscemi no elenco de apoio, vivendo um perfurador louco, que protagoniza cenas hilariantes. Fora isso, nem Billy Bob Thornton como um diretor da NASA consegue evitar uma procissão interminável de clichês e patriotadas, tudo embutido na câmera videoclípica de Bay, que não perde qualquer oportunidade para explodir e destruir o que vier pela frente. Detalhe: a trilha sonora do longa recebeu uma atenção extra por conta da balada sacarinada “I Don’t Wanna Miss A Thing”, do Aerosmith, como tema do casal de galãs. Não há nada, absolutamente nada original no longa.

 

Se “Impacto Profundo” e “Armaggedon” não são grandes coisas como filmes, uma coisa os une: o planeta Terra parece habitado por gente que tem o mínimo de conexão com a realidade a ponto de saber que, se alguém diz que o mundo vai acabar, parece que isso não é mentira. Em “Não Olhe Pra Cima”, isso não acontece. Nos vinte e poucos anos que separam as três tramas, o mundo mudou a ponto de alienar completamente as pessoas do que se entende como realidade e flexiona este conceito ao máximo, disponibilizando dimensões em todas as partes. O que McKay quer dizer com seu filme é que ninguém está dando a mínima para a destruição que estamos causando no mundo e que, num espaço de tempo já mensurável, ele irá, simplesmente, falir diante dos nossos olhos. O cometa do longa é o aquecimento global e a destruição que estamos causando no meio ambiente e isso não parece servir de alerta para governantes e governos do planeta. Além disso, o roteiro acrescenta a vigente onda de burrismo orgulhoso pela qual parecemos passar. Gente que, na verdade, se faz de burra diante das possibilidades infinitas de lucro e alienação de mais e mais pessoas para que não saibam que são meros joguetes nas mãos de conglomerados de mídia e empresas transnacionais. Neste ponto está a tal interseção com “Matrix” que falamos acima. E como símbolo do burrismo está a presidente americana Orlean, vivida por Meryl Streep, que encarna um mix de trump e tinturas de outros governantes no mesmo estilo, incluindo aí, o nosso genocida de plantão. Ela e seu filho, vivido por Jonah Hill, encabeçam um governo negligente e refém de corporações internacionais que, em nome de lucros astronômicos – sem trocadilho intencional – colocam em risco e executam a vida de bilhões de pessoas a despeito dos avisos dos astrônomos Di Caprio e Lawrence sobre o inevitável.

 

Claro que, ao contrário dos longas do fim do século passado, “Não Olhe…” é uma comédia e das boas. O roteiro exagera porque o tema pede, os atores dão tinturas absurdas a seus personagens porque, sim, tudo é absurdo mesmo e, como diz a personagem de Lawrence mais para o fim do filme, “Foda-se, vamos todos morrer mesmo”.

 

Colocando estes três longas em perspectiva e procurando olhar para trás na nobre linhagem de filmes sobre desastres planetários, não lembro, repito, de ver uma distopia tão cruel como a de “Não Olhe Pra Cima”, nos fazendo de cegos de tanto ver a nossa ruína diária, transformada em entretenimento fácil na mão de espertalhões sem coração ou escrúpulo de qualquer espécie. Não esqueça de ver a cena pós-créditos.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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