Titãs Encontro: Reflexão e Resenha

 

 

A Reflexão

 

Há pouco tempo, Arnaldo Antunes deu uma entrevista para o podcast Super Plá, comandado por João Gordo. Em certa altura, entusiasmado com a volta da formação clássica dos Titãs para vários shows pelo país, Gordo perguntou: “Não dá vontade de vocês comporem um disco novo? Assim, todo mundo junto?”. Arnaldo rechaçou imediatamente a ideia: “Não, não, é só um momento de nostalgia, uma celebração. O Branco, o Toni e o (Sérgio) Brito respondem pela banda, são este núcleo, a gente só está fazendo algo pra celebrar, para os fãs, para nós mesmos e tal”. De fato, Arnaldo, que saiu da banda em 1992, já tem 31 anos de carreira solo bem sucedida, vinte a mais do que o tempo em que esteve na banda paulistana, sem mencionar os projetos paralelos, dentre os quais, os Tribalistas. Além dele, os “ex-Titãs”, Nando Reis e Paulo Miklos também têm carreiras solo importantes e bem sucedidas, ou seja, se tornaram artistas à parte da banda original, no sentido de, além de optarem por caminhos estéticos diferentes dos Titãs, não recorrem à eficiente ferramenta da nostalgia em seus trabalhos. Charles Gavin, o outro ex-Titãs, tornou-se um importante pesquisador musical.

 

 

Mas, ora, não há nada de errado na nostalgia, ainda que ela seja um fenômeno típico do nosso tempo corrido altamente manipulável, que exprime o desejo de preservar algo a ponto de proporcionar uma revisita a um tempo que já se foi. No caso dos Titãs “clássicos”, dá pra cravar um marco final para o exercício de retorno que estão pondo em prática hoje: o início dos anos 2000, materializado pelo álbum “A Melhor Banda Dos Últimos Tempos Da Última Semana”, lançado em 2001. Dá pra dizer que este foi o último álbum realmente emblemático da banda paulistana, o último a ter o carinho incondicional dos fãs, o último a trazer esta formação mais clássica da banda, ainda que não tenha a presença de Arnaldo Antunes e de Marcelo Fromer. De lá pra cá, os Titãs continuaram a gravar, foram encolhendo gradativamente, até se tornarem um trio, exercendo, durante este processo, escolhas estéticas pra lá de discutíveis, como se associar ao produtor rick bonadio em “Sacos Plásticos” (2009) ou lançar vários EPs acústicos (de novo essa coisa de acústico, Titãs?), sem falar no péssimo álbum de originais, “Olhos Furta-Cor”, do ano passado, que a gente resenhou e você lê neste link.

 

 

Por isso, uma olhada no setlist dos dois primeiros shows que a banda reunida ofereceu em sua turnê Titãs Encontro, na Jeunesse Arena, Rio de Janeiro, mostra que o exercício de nostalgia, que tem o ano de 2001 (que também marca a morte do guitarrista Marcelo Fromer) como ponto de chegada, crava suas garras na chamada “época de ouro” da banda paulistana, a segunda metade da década de 1980, quando os Titãs, ao lado de Paralamas do Sucesso e Legião Urbana, respondiam pelo que havia de mais bem sucedido no rock nacional daquele tempo. Sua trilogia clássica, composta por “Cabeça Dinossauro” (1986), “Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas” (1987) e “O Blesq Blom” (1989) responde por seu período mais criativo e musicalmente instigante, também marcado por uma capacidade pop inegável. Estes três álbuns, juntos, fornecem vinte das 31 canções do show atual. Pessoalmente, eu incluiria nesta fase dourada mais dois álbuns: “Televisão”, de 1985, maravilhoso, instigante e responsável por mais três canções – “Não Vou Me Adaptar”, “Televisão” e “Pra Dizer Adeus” – e “Go Back”, o álbum que o grupo gravou em 1988, no Festival de Montreux, do qual saiu a melhor versão da faixa-título, cujo original é de seu álbum de estreia, de 1984.

 

 

A tal trilogia de ouro titânica não seria viável sem a presença do produtor Liminha, que também está nos palcos nesta turnê de reencontro. Nada mais justo, foi com ele que o octeto paulista conseguiu encontrar essa sonoridade experimental, pop, instigante e deliciosamente estranha, que os marcou para sempre. Mas tem um porém. Se a segunda metade dos anos 1980 foi dourada para os Titãs, o mesmo não se pode dizer do início da década de 1990. Os álbuns que eles gravaram – “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora” (1991), “Titanomaquia” (1993) e “Domingo” (1995) – não repetiram o desempenho dos anteriores e, mais que isso, demoliram a tal sonoridade vencedora de antanho sem que a banda achasse um novo som. Vagou pelo hardcore existencial mal produzido do primeiro – que tem seus fãs -, buscou um produtor gringo – Jack Endino – para forjar o peso do segundo e ficou a meio caminho de lugar nenhum no terceiro. Neste processo, o grupo se desgastou, perdeu potência e visibilidade e precisou fazer uma escolha oportunista: gravar um “Acústico MTV” no qual abriam mão do peso e do experimentalismo que os marcara até então para abraçar um som brando, comunal, pacífico e pouco interessante. Tudo bem, foram muito bem sucedidos comercialmente, mas se aprisionaram no formato, precisando lançar um outro álbum nos mesmos moldes, “Volume 2” (1998) e um inominável disco de covers, “As Dez Mais” (1999), do qual a banda certamente não faz questão de lembrar, ainda que ele contenha uma de suas gravações mais bonitas, a versão para “Querem Acabar Comigo”, de Roberto e Erasmo, certamente feita para reeditar o sucesso de “É Preciso Saber Viver”, que puxou e consagrou o “Volume 2”.

 

 

Sendo assim, a atual turnê dos Titãs cobre dezessete anos de sua carreira, de 1984 a 2001, com direito a set acústico para homenagear a segunda metade dos anos 1990, além de relembrar da presença de Marcelo Fromer, representado por sua filha, Alice, que canta em “Toda Cor” e “Não Vou Me Adaptar”. Há momentos em que o grupo brilha intensamente, especialmente quando Paulo Miklos (que sempre foi o melhor cantor da banda) entoa a minha preferida do repertório titânico – “Diversão” – logo na abertura. “Igreja”, de Nando Reis, que já não tem mais Arnaldo Antunes deixando o palco, ainda enverga o poder subversivo anti-religião, do mesmo jeito que a gente cantava nos corredores do Colégio Santo Agostinho, lá por 1986 ou 1987. E tem a grande ressignificação de “Bichos Escrotos”, tornada sob medida pelo governo anterior e sua impressionante escumalha. Fora esses momentos altíssimos, a turnê dá ao fã de longa data a chance de se reencontrar com os velhos contadores de história, os velhos performers, os velhos Titãs. Se o tempo os levou das paradas de sucesso, às vezes fazendo com que eles cometessem deslizes, também os trouxe de volta para os braços de quem sempre os amou. Vale a nostalgia.

 

 

A Resenha

 

Titãs Encontro: a máquina do tempo, na memória, nas emoções

Música pode representar muitas coisas na vida das pessoas. Num certo sentido, ela é máquina do tempo, por permitir que a gente se transporte nas lembranças dos momentos vividos ou mesmo se projete em futuros imaginados enquanto ouve. O show emocionante dos Titãs no Jeunesse Arena (RJ), sexta-feira, dia 28 de abril, é o melhor exemplo disso.

 

O público, majoritariamente composto por quarentões e cinquentões, pôde revisitar suas memórias mais particulares, que tiveram como trilha sonora as canções gravadas pelo grupo ao longo de quatro décadas, executadas em arranjos muito próximos aos dos seus álbuns originais. E que canções sensacionais são essas. Foram trinta e duas no total. O show “Encontro” (na verdade, um reencontro) marca a turnê em que a banda volta a apresentar sua formação original – à exceção dos dois integrantes que já faleceram, Ciro Pessoa e Marcelo Fromer. A força dessa obra tão importante para o Rock brasileiro foi acrescida de muita qualidade, com as presenças dos ex-integrantes que fizeram carreira solo. Além da visível alegria dos amigos tocando o repertório que os popularizou, também eram perceptíveis a desenvoltura e a segurança com que reconstruíam suas harmonias, trocando de instrumentos e explorando as possibilidades vocais.

 

Tecnicamente, os Titãs estão melhores que nunca. A ordem das canções não seguiu a cronologia dos álbuns, mas possibilitou que eles se alternassem na voz que liderava cada uma, com os demais fazendo backing vocals, algo marcante na história da banda. Então, quando ecoou a base pré-gravada de “Diversão” na abertura dos trabalhos e as sombras dos sete titãs apareceram na frente de um telão branco, já dava para ouvir antecipadamente o riff poderoso da guitarra de Tony Bellotto e a voz de Paulo Miklos. Assim seria no restante do show.

 

Antes de cantar “Tô Cansado”, Branco Mello falou sobre a voz rouca, resultado de uma laringite crônica que o incomoda há algum tempo, mas nem isso pareceu um infortúnio para o público. A energia da banda continua garantindo a empolgação, em especial nas canções de andamento mais rápido, algo característico dos Titãs que já foram do iê-iê-iê, mas nunca deixaram de ser também do pós-punk. Assim, Arnaldo Antunes em “Lugar Nenhum”, Sérgio Britto em “Desordem” e “Homem Primata” mantiveram a plateia pulando.

 

Em “O Pulso”, a linha de baixo de Nando Reis é aquele colorido que faz uma canção aparentemente simples ser grande, e o mesmo se pode dizer da “cama” de teclado que Sérgio Britto toca em “Estado Violência”, cantada por Miklos. A fase acústica dos Titãs também teve seu espaço no show, após a reprodução de vídeos com momentos íntimos da banda no passado. No rearranjo dos instrumentos, Nando foi para os violões, Miklos para algo como um bandolim e Branco para o baixo Hofner (famoso nas mãos de Paul McCartney). A banda ainda contou com a participação do gênio Liminha, na guitarra e também no violão, no lugar deixado por Fromer.

 

O titã falecido em decorrência de um atropelamento, em 2001, foi homenageado pelos amigos, que convidaram sua filha Alice Fromer para cantar, em ritmo de reggae uma das primeiras canções de sucesso do grupo. Emocionante ouvi-la no verso: “Toda cor me lembra os seus olhos, eu sei que vou, eu quero te encontrar”. Alice ainda emprestou a voz para “Não vou me adaptar”.

 

As homenagens seguiram com Sergio Britto apresentando “Go Back”, feita a partir de poema de Torquato Neto, e com a lembrança da partida recente do Tremendão Erasmo Carlos, com a banda tocando a sua “É preciso saber viver”. Na sequência final, desmontado o formato acústico, as guitarras de Tony e Liminha passaram ao ótimo uso dos efeitos de distorção com a bateria vibrante de Charles Gavin – sempre inventivo, preciso, elegante – para levantar a plateia com “Polícia”, “Porrada” e “Bichos Escrotos”. Pura catarse.

 

Antes de voltarem ao palco no bis para tocar “Miséria”, “Família” e “Sonífera Ilha”, o público acendeu as lanternas dos celulares (como havia acontecido em “Epitáfio”) para esperar a banda. Sérgio Britto disse: “Parece que a gente está numa espaçonave”. E estavam.

 

Aquela mesma capaz de devolver as pessoas aos melhores momentos de suas vidas.

 

 

Setlist – Dia 28 de Abril de 2023 – Jeunesse Arena, RJ

1. Diversão (Nando Reis e Sérgio Britto, 1987)

2. Lugar nenhum (Arnaldo Antunes, Charles Gavin, Marcelo Fromer, Sérgio Britto e Tony Belloto, 1987)

3. Desordem (Charles Gavin, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, 1987)

4. Tô cansado (Branco Mello e Arnaldo Antunes, 1986)

5. Igreja (Nando Reis, 1986)

6. Homem primata (Sergio Britto, Marcelo Fromer, Nando Reis e Ciro Pessoa, 1986)

7. Estado violência (Charles Gavin, 1986)

8. Introdução por Mauro & Quitéria / O pulso (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Bellotto, 1989) / Vinheta por Mauro & Quitéria

9. Comida (Arnaldo Antunes, Marcelo Frommer e Sergio Britto, 1987)

10. Jesus não tem dentes no país dos banguelas (Marcelo Fromer e Nando Reis, 1987)

11. Nome aos bois (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Nando Reis e Tony Bellotto, 1987)

12. Eu não sei fazer música (Arnaldo Antunes, Charles Gavin, Branco Mello, Marcelo Fromer, Nando Reis, Paulo Miklos, Sérgio Britto e Tony Bellotto, 1991)

13. Cabeça dinossauro (Arnaldo Antunes, Branco Mello e Paulo Miklos, 1986)

14. Epitáfio (Sérgio Britto, 2001) – Set acústico

15. Os cegos do castelo (Nando Reis, 1997) – Set acústico

16. Pra dizer adeus (Nando Reis e Tony Bellotto, 1985) – Set acústico

17. Toda cor (Marcelo Fromer, Ciro Pessoa e Carlos Barmark, 1984) – Set acústico

18. Não vou me adaptar (Arnaldo Antunes, 1985) – Set acústico

19. Marvin (Patches) (Ronald Dunbar e General Johnson, 1970, em versão em português de Nando Reis e Sergio Britto, 1984)

20. Go back (Sérgio Britto a partir de poema de Torquato Neto, 1984)

21. É preciso saber viver (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1968)

22. 32 dentes (Branco Mello, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, 1989)

23. Flores (Charles Gavin, Paulo Miklos, Sergio Britto e Tony Bellotto, 1989)

24. Televisão (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Bellotto, 1985)

25. Porrada (Arnaldo Antunes e Sérgio Britto, 1986)

26. Polícia (Tony Bellotto, 1986)

27. Aa uu (Marcelo Fromer e Sérgio Britto, 1986)

28. Bichos escrotos (Arnaldo Antunes, Nando Reis e Sérgio Britto, 1986)

Bis:

29. Miséria (Arnaldo Antunes, Paulo Miklos e Sérgio Britto, 1989)

30. Família (Arnaldo Antunes e Tony Bellotto, 1986)

31. Sonífera ilha (Branco Mello, Marcelo Fromer, Tony Bellotto, Carlos Barmack e Ciro Pessoa, 1984)

 

 

Colaborou Ricardo Benevides

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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