Roger Waters e a luta por um mundo mais justo

 

 

 

“Se você é um daqueles que diz: ‘Eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger, vaza pro bar”. Esse “papo reto” em letras garrafais apareceu num dos telões montados no Estádio Nilton Santos na noite de anteontem, um instante antes de começar o segundo show no Brasil da turnê de Roger Waters – “This is not a Drill” –, que ainda vai passar por Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo.

 

Mais que um aviso importante para parte do público – aquela que insiste em ignorar o conteúdo das letras do Floyd, as posições históricas da banda, seus alinhamentos ao longo da carreira e mesmo de seus integrantes após a separação –, era a senha para entender que, aos 80 anos, o ex-baixista faz de suas apresentações momentos para se emocionar com as melodias mas, acima de tudo, para refletir sobre as mazelas do mundo.

 

Já nos shows da turnê de 2018, o artista projetava em seus telões mensagens como “resistam ao neofascismo” e “Ele não”, fazendo referência ao então candidato Jair Bolsonaro. Em São Paulo, falou à plateia: “vocês têm uma eleição muito importante daqui a três semanas. Sei que isso não é da minha conta, mas devemos sempre combater o fascismo. Não dá para ser conduzido por alguém que acredita que uma ditadura militar pode ser uma coisa boa”. Se mais pessoas o tivessem escutado na época…

 

O fato é que tudo é realmente político na obra e Waters se vale disso para construir os roteiros de seus shows, percorrendo uma série de temas importantíssimos desde sempre. No início emocionante, “Comfortably Numb” em arranjo minimalista, vemos aquele cenário em que as sociedades adoecidas procuram alento em substâncias que possam servir como fuga ou analgesia.

 

“Happiest Days of our lives”, “Another Brick in the Wall” partes 2 e 3 vieram na sequência problematizando os sistemas educacionais que impedem as crianças de desenvolverem senso crítico – em tema caro a Waters, que voltaria a abordar o conformismo em “Sheep”, do álbum Animals (1977), com os provocativos versos “What do you get for pretending the danger’s not real? Meek and obedient you follow the leader” (O que você ganha por fingir que o perigo não é real? Manso e obediente você segue o líder). O povo que “vazou pro bar” não perceberia a relação, certo?

 

Depois vieram “The Powers that be”, do disco Radio K.A.O.S (1987), já na carreira solo – relacionando a ação dos poderosos aos assassinatos de grupos minoritários ou historicamente prejudicados em seus direitos – e “The Bravery of Being out of Range”, do álbum Amused to Death (1992) – sobre o reacionarismo e a truculência dos líderes que jogam bombas a distância, na denúncia de uma falsa bravura (dos que estão “fora do alcance”); isso com os telões mostrando os presidentes estadunidenses ao lado da inscrição “criminoso de guerra”, acompanhada dos números de suas vítimas ao redor do globo.

 

“Have a cigar”, sobre a ganância e o deslumbramento com o sucesso, “In the flesh”, sátira sobre os regimes totalitários, a sequência interminável de canções engajadas e de denúncia das realidades mais sombrias jamais passariam despercebidas ao público familiarizado com a língua inglesa.

 

Sim, muitas pessoas não dominam o idioma, vão pelos efeitos – incríveis sempre – como os balões que flutuam em cima da plateia ao longo do show (o inevitável porco e uma ovelha, em “Sheep”), mas também pelo espetáculo das luzes, reproduzindo formas, como a do prisma da capa de Dark Side of the Moon, só que projetando os feixes coloridos sobre o público, cruzando o estádio. Há os que vão só para dançar descompromissadamente, nos andamentos mais vibrantes das canções do Floyd. Que mal há nisso? Nenhum. Apenas há o seguinte.

 

Roger Waters quer que as pessoas vão além, segundo as ideias que norteiam a sua arte. Ele tem todo o direito. Isso o torna ainda mais imprescindível como artista e cidadão. É aí que vem a importância das mensagens traduzidas nos telões. Não é “doutrinação”, se você não for um fanático, com ideias cristalizadas. É um convite a pensar e se escandalizar com desumanidades.

 

No trecho final de “Run Like Hell”, a imagem é da câmera infravermelha de um helicóptero acompanhando civis, no Iraque, momentos antes de serem metralhados. As legendas deram conta de que aquele foi o vídeo vazado pela militar norte-americana Chelsea Manning para o Wikileaks, de Julian Assange. Então, a canção passa a ser ressignificada nesse contexto, com o terrorismo de Estado como pano de fundo. Como não ver a importância disso?

 

O show também teve momentos emocionantes, como em “Wish you were here”, com as legendas contando sobre as conversas entre Roger e Syd Barrett, que levaram à criação da banda. E Us and Them, com o lamento pelas desigualdades mais agudas do planeta.

 

Como bola fora, apenas os dois momentos em que Waters tentou conversar com a plateia e isso se converteu em longuíssimos discursos, que quebraram um pouco o ritmo do show. As canções, os telões e sua própria história de ativismo falam por si. E como são fundamentais nesses tempos em que ainda há um número expressivo de pessoas querendo o que não pode ou não deveria existir.  As artes “neutras”. Que bom termos artistas como Roger Waters para chacoalhar a mesmice.

 

 

Setlist:

Comfortably Numb 2022
The Happiest Days of Our Lives
Another Brick in the Wall, Part 2
Another Brick in the Wall, Part 3
The Powers That Be
The Bravery of Being Out of Range
The Bar
Have a Cigar
Wish You Were Here
Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)
Sheep

In the Flesh
Run Like Hell
Déjà Vu
Déjà Vu (Reprise)
Is This the Life We Really Want?
Money
Us and Them
Any Colour You Like
Brain Damage
Eclipse
Two Suns in the Sunset
The Bar (Reprise)
Outside the Wall

Ricardo Benevides

Ricardo Benevides é escritor e professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ e da FACHA. Doutor em Literatura Comparada (UERJ), também trabalhou como editor na Ediouro e na Editora Paz e Terra.

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