Robert Cray – Vivo Rio, 02/08/19

 

Um apreciador de música desavisado poderia assistir os shows que Robert Cray fez no Brasil – dois deles ao ar livre e de graça, em São Paulo e Brasília – e não se dar conta da grandeza do artista diante de si. A julgar pela apresentação que o guitarrista fez sexta (2/8), no Vivo Rio com casa cheia, mesmo quem pagou caro para vê-lo talvez não tenha percebido, num primeiro momento, a intensidade com que ele e banda se entregam à execução de cada canção. Porque Cray é desses músicos que fazem tudo com máxima simplicidade e só os mais atentos vão notar que ele vive um transe, quando toca. Ao longo de uma hora e meia, parte da plateia que conversava enquanto o show rolava foi silenciando, à medida que Cray desfilava um repertório variado, fazendo jus a mais de 40 anos de atividade, e, principalmente, oferecendo uma coleção de improvisos inspirados como o verdadeiro blues requer.

 

Aos 66 anos (recém-completados um dia antes do show), subiu ao palco pontualmente às 21h30 e quem ganhou o presente foi o público carioca. Começou com “I Shiver”, um rock de andamento cadenciado, cheio de suingue, cartão de visitas perfeito para mostrar os talentos de sua banda. Dover Weinberg (teclados) solou lindamente, com efeitos de órgão Hammond, acompanhado das linhas de baixo “coloridas” de Richard Cousins, parceiro de longa data, e da bateria segura e inventiva de Terrence Clark.

 

Ao todo, foram cinco canções do seu disco mais recente, Robert Cray and Hi Rhythm (2017) no qual recria composições de outros artistas e inclui algumas suas ao lado da lendária banda de soul que gravou com Al Green e vários outros bambas. No Rio, “The Same Love That Made Me Laugh”, de Bill Withers, fez a transição para o clima intimista e, sem perder nada da atmosfera, o grupo engrenou no reggae que abre o disco Twenty, “Poor Johnny”, para a audiência reconhecer a versatilidade do cardápio.

 

Após apresentar os músicos, começou a ganhar a plateia com o solo repleto de arpejos bluseiros em “You’re Everything”, arrancando aplausos no meio da execução, algo que se repetiria outras vezes, como em “I Can’t Fail”, blues que flerta com o country. E houve muitos momentos vibrantes em que o público balançou nas cadeiras. Em “I Don’t Care”, tirou a mão da guitarra para ouvir sua banda, soltar a voz potente e sentir o ritmo.

 

Após “She’s Gone”, com outro solo impecável de Weinberg nos teclados, Cray tocou “You Had my Heart”, que remete à divisão rítmica de matriz africana, cujas influências se fazem sentir em várias expressões culturais nas Américas – ele já havia experimentado a marcação que lembra o ritmo dos tambores do Candomblé em “I Was Warned”, do disco homônimo, que ficou faltando no set list dessa turnê. Na batera, Terrence Clark conduziu tocando chocalho e fazendo a levada nos tons, detalhe que fez toda a diferença para o clima e para o resultado: o público hipnotizado.

 

Já perto do final, “Just How Low” passou despercebida para quem não se ligou na letra, com a crítica demolidora ao presidente americano por seus comentários racistas, xenofóbicos e de cunho segregacionista, fazendo menção ao muro que Trump quer construir para separar os Estados Unidos do México. O refrão conclui: “One never knows just how low someone might go” (“Nunca se sabe quão baixo alguém pode ir”).

 

O astral voltou a subir em “Right Next Door (Because of Me)” com o público reconhecendo a canção radiofônica com linha de baixo elegante de Cousins, no suingue que perduraria até o final de “You Must Believe in Yourself”, rock com acento funk. A plateia ainda aplaudia de pé quando Robert Cray e banda voltaram para o bis, com o hit “Nothing But a Woman”, que evidentemente faria todo mundo dançar. Mas um show assim não poderia acabar sem um momento reverente ao blues e um de seus herdeiros mais festejados. “Times Makes Two” (do disco Time Will Tell) é a canção que Hendrix assinaria com gosto, e teve Cray soltando a mão, criando frases chorosas nos bands da guitarra, de um jeito emocionante, expressivo, para que jamais esqueçamos que algo aparentemente simples pode ser incrivelmente profundo.

 

Robert Cray deve lançar um álbum de inéditas, já gravado, até o final do ano. Fica a torcida para que seu retorno ao Brasil não demore outros dez anos.

 

 

Set List (entre parênteses os álbuns de origem)

 

  1. I Shiver (Shame + A Sin, 1993)
  2. The Same Love that Made Me Laugh (Robert Cray and Hi Rhythm, 2017; canção de Bill Withers)
  3. Poor Johnny (Twenty, 2000)
  4. You´re Everything (In My Soul, 2014)
  5. I Don’t Care (Robert Cray and Hi Rhythm, 2017; canção de Sir Mack Rice)
  6. She’s Gone (False Accusations, 1985)
  7. You Had My Heart (Robert Cray and Hi Rhythm, 2017)
  8. Chicken in the Kitchen (This Time, 2009)
  9. I Can’t Fail (This Time, 2009)
  10. You Move Me (In My Soul, 2014)
  11. Deep in my Soul (In My Soul, 2014)
  12. Just How Low (Robert Cray and Hi Rhythm, 2017)
  13. Right Next Door (Because of Me) (Strong Persuader, 1986; canção de Dennis Walker)
  14. You Must Believe in Yourself (Robert Cray and Hi Rhythm, 2017; canção de Charles Jerue)

 

BIS

  1. Nothing But a Woman (Strong Persuader, 1986)
  2. Time Makes Two (Time Will Tell, 2003)

Ricardo Benevides

Ricardo Benevides é escritor e professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ e da FACHA. Doutor em Literatura Comparada (UERJ), também trabalhou como editor na Ediouro e na Editora Paz e Terra.

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