Quizomba: Festa na Lapa e a homenagem a um rei
Esta edição da Coluna Coringa foi feita com muita emoção. Afinal, me propus a escrever sobre o desfile do Quizomba deste ano, bloco em que fiz amigos, histórias, onde iniciei meu passeio musical pelos blocos do Rio de Janeiro e tive a honra de tocar surdo de segunda e também de fazer um show como vocalista. E não é só isso: propus-me a falar ainda da despedida de Carlos Franca, quizombeiro, tricolor, portelense, um dos fundadores do bloco Desliga da Justiça e amigo de todos.
Carlinhos era um rei na arte de viver. Seu carisma e inteligência – refinados e simples ao mesmo tempo – atraiam a todos, e o olhar terno de quem pregava a amizade o respeito como elos maiores nessa vida só fez crescer a corrente de amigos. Nunca o vi chateado ou ensimesmado. Nunca o vi agressivo ou nervoso. Apenas naquele estado de espírito que só alguns conseguem manter… Carlinhos flanava, misturando a sagacidade da Zona Norte com os livros que lia e opiniões que tinha. Com seu amor, Miriam Conde, formava uma dupla de anfitriões imbatível e adorável, nas tantas noites felizes que promoveram em Saquarema, para um batalhão de amigos e de amigos dos amigos.
Minha identificação com Carlinhos foi imediata: ambos somos de Madureira, e só isso fez render muita prosa e cervejas nos pós ensaio do Quizomba, no Circo Voador, nos idos de 2008.
André Schmidt, criador e mestre de bateria do Quizomba, foi amigo íntimo de Carlinhos antes de qualquer bloco. Também de Madureira, tive identificação imediata com o músico, que virou amigo, mestre e parceiro. Este ano, Schmidt resolveu fazer uma homenagem a Carlinhos, que se despediu em plena terça-feira de Carnaval. A homenagem rolou durante o desfile do Quizomba, realizado na Lapa, Rio de Janeiro, dia 29 de fevereiro.
Como escrever emocionado e sobre amigos é tarefa difícil, parti para uma inovação na Coluna: uma entrevista com André Schmidt, sem cortes ou edição. Abaixo, o resultado dessa parceira.
Coluna Coringa – Fale um pouco sobre o início do Quizomba, do surgimento da oficina, a razão do nome…
André Schmidt – O Quizomba nasceu em 2001 a partir de uma oficina de percussão. Éramos músicos cariocas que curtiam Carnaval e resolvemos criar um bloco para tocar samba, marchinhas e músicas pop. Não havia pretensão de nos transformarmos num grande bloco, era mais uma brincadeira de Carnaval. O nome Quizomba vem do samba do compositor Luiz Carlos da Vila, do bairro de Vila Isabel, que tinha composto Kizomba, a festa da raça. Decidimos que o nome representava bem o bloco, e durante muito tempo nossas cores foram o amarelo e o preto.
CC – O Quizomba também é reconhecido por apresentações cheias de energia, com a sua poderosa bateria, a Magnética. Fale-me da bateria…
AS – O Quizomba é um bloco que começou através de uma oficina de percussão, com o objetivo de criar a sua própria bateria. A Magnética, nome dado a nossa bateria, é e sempre será o nosso maior orgulho. Dela saíram inúmeros batuqueiros que hoje desfilam com autoridade em outros grandes blocos e em escolas de samba. Batemos forte na tecla de que para participar de nossa bateria precisa ter um mínimo de comprometimento e estudo para que, nas apresentações, o Quizomba possa mostrar todo o seu suingue e a sua capacidade musical. São oito ritmos diferentes, variações e arranjos para 50 músicas, que os alunos precisam aprender em 10 meses de aula. Por isso é necessário dedicação. No primeiro desfile, em 2002, éramos em torno de 30 batuqueiros. Neste último carnaval desfilamos com 180 ritmistas, onde tivemos a presença também da Magnética de São Paulo, pois em 2012 abrimos oficina na terra da garoa e ajudamos também no crescimento do carnaval paulistano. Temos atualmente seis naipes: surdos de primeira, segunda e terceira, caixa, repique, agogô, chocalho e tamborim. É com muita satisfação que podemos dizer que somos referência para a iniciação de batuqueiros no Carnaval de rua no Rio de Janeiro e em São Paulo.
CC – Um dos atrativos do bloco é o repertório muito bem escolhido e variado, estou certo?
AS – Está! O repertório do Quizomba é bem eclético, com músicas dançantes e animadas. A ideia é sempre buscar novidades que de alguma forma surpreendam e façam o nosso folião delirar, dançar e cantar muito! Sempre tentamos criar arranjos bem particulares, para deixarmos a canção com a nossa cara, mas também bem carnavalesca. Surpresas musicais são o nosso ponto forte. Este ano lançamos algumas, como Maria Maria, do Milton Nascimento, na voz da Roberta Sá, e foi um grande sucesso. É muito legal ouvir o público dizer que o nosso repertório é fantástico, e que a Magnética faz ficar ainda melhor. Não foi à toa que já recebemos o prêmio Serpentina de Ouro, do jornal O Globo, de bloco de melhor música do carnaval carioca! Por fim, a escolha do repertório é feita em sua maioria por mim, mas com colaboração dos músicos e ritmistas da Magnética.
CC – O Quizomba é pai de muitos blocos, como o Desliga da Justiça. Como você se sente sendo o mentor desse movimento?
AS – O Quizomba faz parte de um conjunto de blocos que ajudou a revitalizar o Carnaval carioca na década passada. Quando o Quizomba foi criado, o Rio de Janeiro tinha um Carnaval concentrado na Sapucaí, com os desfiles de escola de samba. O Carnaval de rua carioca estava adormecido. Quando iniciamos essa nossa linda aventura musical com a oficina de percussão, fomos formando novos batuqueiros apaixonados pela folia. Pessoas que não se imaginavam tocando estavam aprendendo e participando ativamente de um bloco como o nosso. Durante esses 20 anos, formamos muitos ritmistas que buscaram, após alguns anos de batucada, criar o seu próprio bloco. Muitos desses grupos permaneceram com a chama acesa e estão até hoje fazendo carnaval da melhor qualidade, como é o caso do Desliga da Justiça, do Batuque das Meninas e do Fogo e Paixão. Para mim e pro Quizomba é um grande orgulho e uma enorme satisfação poder ter crias tão lindas e ter fortalecido o crescimento do Carnaval do Rio de Janeiro. Você, inclusive, é testemunha e parte disso!
CC – Com muito orgulho! Como é tocar na Lapa e ser o bloco residente do Circo Voador, uma casa clássica da arte carioca?!
AS – Em 2004 estávamos sem espaço para realizar a oficina. Nesse mesmo ano, em agosto, aconteceu a reabertura do Circo Voador. Shilon, um dos nossos músicos e fundadores, e a produtora Maria Juçá reabriram o Circo Voador e convidaram o Quizomba para ser o bloco residente. Temos hoje, com certeza, um dos melhores espaços para realizar a nossa oficina de percussão, seja pela localização, pela estrutura e, principiante, pela história que essa casa de shows tem! Somos muito agradecidos e abençoados em estarmos todos esses anos em lugar tão importante pra música popular brasileira, podendo realizar nossos shows de pré-carnaval, festas e ensaios na casa.
CC – Como foi o desfile deste ano? Houve um tema? Convidados? Fale também da homenagem ao nosso irmão Carlos França…
AS – O desfile deste ano foi sensacional. Todo ano falamos que foi o melhor Carnaval e parece que essa frase nunca irá parar de se repetir. Nossa bateria foi maravilhosa do início ao fim. Nossos músicos no trio também deram conta do recado, com lindas performances. Sempre trazemos um tema que achamos ser relevante para compor o nossa folia. Este ano, trouxemos como mote a sustentabilidade: tanto os adereços do trio como dos músicos e ritmistas da estiveram alinhados com o tema. Além disso, homenageamos também duas grandes figuras muito importantes para o Quizomba. Interpretado por nossa madrinha, a cantora Roberta Sá, que já faz parte do bloco há cinco anos, homenageamos a grande rainha e mestre do samba Beth Carvalho. Outra homenagem que muito nos emocionou foi feita a um grande amigo e eterno quizombeiro, Carlos França, o Carlinhos. Eu, particularmente, tive uma amizade com ele desde a infância, quando éramos moleques brincando pelas ruas de Madureira. Foi uma linda homenagem, na qual cantamos um samba da nossa linda Portela, afinal ele era portelense. Tocamos para ele também uma canção do Gonzaguinha chamada O que é o que é. Nessa homenagem juntamos ainda batuqueiros do Desliga da Justiça, bloco que foi criado por nossos alunos e teve o Carlinhos como um dos seus fundadores.
CC – Como você enxerga o cenário do Carnaval de rua atual onde, de um lado, um crescimento cada vez maior, e de outro pouco ou nenhum apoio e patrocínio?
AS – O crescimento do Carnaval do Rio de Janeiro é nada mais do que o reflexo do sucesso geral do Carnaval de rua. A cidade do Rio de Janeiro, como todos já sabem, tem tudo para ser a capital turística do Brasil. Mas com a incapacidade do Estado e da Prefeitura para administrar e cuidar da cidade, estamos cada vez mais perdendo tempo e espaço para outras capitais. O mesmo acontece com o Carnaval carioca. A falta de organização, gerência e diálogo nos faz engessar e não sair do lugar. Às vezes tenho a sensação de que, para os políticos que estão no poder, tanto faz e tanto fez ter ou não um Carnaval, expressão fundamental da cultura popular carioca. Com menos tempo sinto que São Paulo já nos ultrapassa nas questões relacionadas à organização e realização da folia de rua.
CC – O Quizomba enfrentou problemas se autorização esse ano?
AS – Todo ano temos problemas para legalização do Carnaval de rua. Isso não acontece somente com o Quizomba. Todos os blocos têm reclamado sobre a dificuldade que é colocar o bloco na rua, inclusive na sua coluna. Além das dificuldades colocadas pelos órgãos públicos, temos também a necessidade de verba, de patrocínio para custear o trio elétrico, os músicos, os técnicos, seguranças… Temos que pagar taxas de liberação, camisetas, banners, designers, produtores, água, gelo… Felizmente o Quizomba faz parte da Liga dos Amigos do Zé Pereira, que cuida da captação de patrocínio para realização do nosso desfile, nos livrando desse verdadeiro sofrimento!
CC – Fale sobre a extensão da oficina do Quizomba para São Paulo…
AS – Com crescimento do Carnaval do Rio de Janeiro e o aumento exponencial de foliões de outros estados, o Quizomba recebeu muitos convites para levar a oficina para outras cidades, principalmente de São Paulo. Em 2012 resolvemos levar a oficina para os paulistanos e iniciar uma nova etapa, que foi sair com a marca do Rio de Janeiro. E deu muito certo. O Quizomba é um dos blocos que ajudou a revitalizar o Carnaval de rua de São Paulo. A nossa oficina acontece às terças-feiras, na Vila Madalena, bairro conhecido por sua veia cultural e que concentra muitos blocos da região. Em São Paulo também Já temos blocos filhotes coordenados por ex-batuqueiros, como Desliga e vem, Lets Block e o infantil Mamãe eu Quero.
CC – E para 2021?
AS – Sobre 2021 ainda é uma incógnita. Estamos em ano de eleição e muita coisa pode mudar. Espero que para melhor. A cultura e a educação não são prioridade do governo atual. Se mudar, espero que o novo prefeito tenha outro olhar sobre a maior festa popular do país. Para uma cidade como o Rio, com suas belezas naturais e seu povo alegre, comunicativo e acolhedor, não investir num evento como o Carnaval é inadmissível. Só mostra a total incompetência dos seus líderes em governar a cidade. Ainda mais quando se encontra praticamente falida. Mas vamos em frente!
Peraí, não acabou não: como não pude estar no desfile do Quizomba, quis ouvir alguém que comprovasse tudo o que soube sobre dia mágico. Com a palavra, PH de Noronha, batuqueiro do Quizomba (fizemos dupla de suros por muito tempo lá), fotógrafo dos blocos cariocas e figura do Carnaval carioca querida por todos… Como Carlos França:
“O desfile deste ano do Quizomba foi especial, por mais de um motivo. Em primeiro lugar, há muito eu não via um envolvimento tão grande da bateria com o bloco. O tema proposto pelo André Schmidt para os batuqueiros motivou muito a galera, que se fantasiou usando adereços recicláveis e apoiou a proposta com entusiasmo. Foi uma das baterias mais animadas que já vi. E teve a homenagem ao Carlinhos França. Miriam, sua parceria de vida, levou fitinhas brancas para os amigos usarem amarradas ao pulso durante o desfile, e ela mesma foi com o chapéu do Pateta da Disney, que o Carlinhos vinha usando nos últimos desfiles em que tocou na bateria do Desliga da Justiça. Foi emocionante. E, para completar, São Pedro ajudou muito, sem deixar chover e nem deixar sair um sol forte. O desfile se desenvolveu super bem, sem maiores problemas, e o público amou! Uma das vantagens do desfile do Quizomba é que tem muito espaço para o público pular e acompanhar o bloco, sem precisar ficar espremido por multidões. Foi um dos melhores desfiles que já vi, desde que comecei a acompanhar o Quizomba, em 2004. Foi mágico!”
Evoé Carlinhos, evoé Quizomba!
Foto: PH de Noronha
Celso Chagas é jornalista, compositor, fundador e vocalista do bloco carioca Desliga da Justiça, onde encarna, ha dez anos, o Coringa. Cria de Madureira, subúrbio carioca, influenciado pelo rock e pela black music, foi desaguar na folia de rua. Fã de poesia concreta e literatura marginal, é autor do EP Coração Vermelho, disponível nas plataformas digitais.
Serei eternamente grata aos amigos. Nossas vidas não teriam sentido se vcs não existissem. Cada palavra de conforto ou exaltação vão ficar sempre em nossas memórias. Fiquem certos de q cada um de vcs estão guardados em nossos corações. Amamos todos vcs.
Mirian Conde