Os vórtices que vêm e vão na obra de Hataalii
Hataalii – I’ll Be Around
48′, 14 faixas
(Panther Mountain)

Está escrito no perfil de Hataalii no site Bandcamp: “Hataałiinez Wheeler é um tipo muito moderno de crooner: um trovador pensativo, de voz grave, cujas serenas canções com toque de surf country exploram a esperança e o desânimo de uma nova geração. A música que ele faz como Hataałii — um termo Navajo que significa ‘cantar’, um diminutivo apropriado de seu nome de batismo — é, por vezes, espirituosa e cansada do mundo, ensolarada, mas adoravelmente egocêntrica.”. Conheci a obra de Hataali no ano passado, quando ouvi o belo álbum “Waiting For A Sign” (resenha aqui) e encontrei em seu registro vocal gravíssimo, seu jeito de compor e arranjar e em seus temas desencantados, alguma semelhança com bandas maravilhosas dos anos 1990 que se foram, a saber, Grant Lee Buffalo, American Music Club e Red House Painters. Ou com o que fizeram seus líderes em suas carreiras solo, Grant Lee Phillips, Mark Eitzel e Mark Kozelek (este também gravou muitas coisas belas sob o nome Sun Kil Moon). Eles e Hataalii são especialistas em documentar uma visão muito alternativa do que significam os Estados Unidos e encará-los como uma sociedade cruel, que não perdoa os diferentes (ao contrário do que era alardeado há até pouco tempo, mas, de fato, nunca aconteceu). As emoções e vivências que esses sujeitos experimentam/experimentaram, alimenta/alimentou seus trabalhos e o jovem trovador do Novo México, de ascendência navajo, se mostra como um artista ímpar nos tempos atuais. E ele está com disco novo, este desconcertante “I’ll Be Around”.
Digo desconcertante porque surge menos de um ano depois de “Waiting…” e porque foi gravado, mixado, produzido, cantado e tocado apenas por Hataalii. A locação foi uma cabana no deserto próximo a Albuquerque, no Novo México. Ali, apenas com sua guitarra, violino, cello, efeitos e câmaras de eco, o jovem (de 23 anos de idade) dispôs suas ferramentas e entregou-se às gravações. O resultado é algo contraditório, espécie de “minimalismo exuberante”, uma vez que, mesmo sabendo que estamos ouvindo apenas um homem, sua guitarra e sua voz, a impressão que temos é de que muitos músicos estavam presentes no estúdio. O trabalho com as câmaras de eco é maravilhoso, dá muitas dimensões às canções que, desencantadas e desencarnadas, parecem flutuar sobre uma paisagem decadente, fantasmagórica, desolada. É como se Hataalii, mesmo ainda bem jovem, tivesse esta habilidade de se desconectar dos aspectos mundanos e falíveis apenas para poder mapeá-los com precisão total e entregar-se a um processo de assimilação que, ao mesmo tempo, transforma essa visão e a constitui, algo que é absolutamente emocional, belo e triste. É grande arte o que ouvimos aqui, pessoal.
Os temas são uniformemente tristes, mas, em alguns momentos, essa visão meio sombria da vida se transforma em teimosa esperança. “When She Looks At Me” é um bom exemplo, dá pra notar a mudança de tom nos acordes e na própria postura de cantar que Hataalii assume, com uma sonoridade estonteante, refletindo a beleza: “when she looks at me//she makes me crazy”. Em “We Made Our Way”, os vocais sussurrados e os tons de slide guitar apontam também para um caminho mais otimista, enquanto “Wait For You” embarca mais numa ambiência folk country mais clássica para comunicar a resiliência do amor diante dos desencontros da vida. “Little Brother” também vai por este caminho, mas esta pode ser a mais alegre canção presente aqui, até mesmo pelo arranjo, que emula o country mais tradicional, com Hataalii se virando até na rabeca. Tudo funciona e, como já dissemos, a mixagem sugere que existem vários músicos tocando ao mesmo tempo, tal a ambiência que estas gravações possuem.
Mas, como também dissemos, o tom deste álbum é sépia e as canções que mergulham neste clima são as mais impressionantes. “She Ain’t Coming Back” é uma porrada na cara, um dedilhado de violão surge em meio a várias cordas e os vocais de Hataalii vão do lamento à lamúria, com um timbre impressionante, que lembra Grant Lee Phillips caso ele vivesse em Twin Peaks. “Seem Alive”, ainda que seja pertencente ao time das tristonhas canções do álbum, tem um inusitado arranjo que coloca uma bateria eletrônica marcando o ritmo enquanto os vocais surgem multiplicados em meio a guitarras que emulam algo do rock alternativo britânico do início dos anos 1980, mais precisamente do Durutti Column. “Set Me Free” mescla vocais que poderiam ser de um Johnny Cash chapado de LSD, com tossidas e pigarros ao fundo e mais ambiência country de lap steel e outros instrumentos. Em algum momento, Hataalii usa seu timbre de Grant Lee Phillips e escapa do arranjo, mas tudo se corrige. Por fim, “I’m Down A Dirty Road” mostra o fim do caminho, pau, pedra, estrada, pó, poeira, ventania, tudo junto.
“I’ll Be Around” tem título apropriado e mostra um artista ascendente, dono de um trabalho absolutamente pessoal e sensacional. Sua simplicidade é paradoxal e produz canções lindas, embaçadas, diáfanas, imprecisas, mas absolutamente sensacionais. Fiquem de olhos e ouvidos ligados em Hataalii.
Ouça primeiro: “I’m Down A Dirty Road”, “When She Looks At Me”, “Set Me Free”, “Seem Alive”, “Somebody Else Has My Baby”, “She Ain’t Coming Back”

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.