O novo Bruce Springsteen existe e é inglês

 

 

 

Sam Fender – People Watching
48′, 11 faixas
(Universal)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

 

Se o mundo anda te desapontando e levando embora suas esperanças de um futuro minimamente bom, vou te contar algo que pode dar um alento: uma das maiores estrelas da música pop internacional tem trinta anos, escreve canções extremamente políticas e pessoais, evocando o espírito de grandes artistas como Bruce Springsteen. Seu nome é Sam Fender e ele está lançando seu terceiro – e ótimo – álbum, “People Watching”, em meio a grande expectativa e resenhas elogiosas. A nossa – de cinco estrelas – é mais uma que celebra os méritos de Sam e o apresenta para um público ainda maior. Sim, porque Fender é um artista que precisa ser conhecido por todos, sua mensagem precisa chegar ao maior número de pessoas e não deixa de ser incrível o fato dele lotar estádios e ter um público tão fiel em tempos como os nossos. Aliás, talvez seja exatamente esse o segredo – muita gente parece estar cansada de bonecos sem expressão ou divas fúteis, infladas e sem sentido dominando palcos e paradas por aí afora. Sam é de verdade, cheio de questões e vontade que as coisas deem certo.

 

“People Watching”, seu terceiro trabalho, dá sequência a “Hypersonic Missiles” (2019) e “Seventeen Going Under” (2021) e mostra que sua sonoridade se tornou mais encorpada à medida em que ele também aprimorou seu talento de compositor. Com produção do próprio Sam e de Adam Granduciel (The War On Drugs), além de outros participantes, “People Watching” traz um feixe irrepreensível de canções que têm mensagem clara e engajada mas também guardam atrativos em termos melódicos e musicais. Os arranjos são criativos e partem daquele “heartland rock” de Springsteen e Tom Petty, acrescentando aqui e ali toques de indie rock contemporâneo e oferecendo ao próprio Sam o protagonismo de imprimir sua marca vocal e seu estilo. Oriundo de North Walls, norte da Inglaterra, cidade próxima a Newcastle, Fender foi um adolescente que viu sua mãe morrer cedo por conta de fibromialgia, enquanto sua relação com o pai decair significativamente pela maior parte de sua adolescência e juventude. A vida no interior de uma Inglaterra precarizada pela opção ao neoliberalismo deu a ele a percepção de que as coisas precisavam mudar. A música serviu como um meio de dar mais foco para o jovem que sofre de TDAH, ou seja, Fender tinha tudo para ser mais um trabalhador uberizado de um filme de Ken Loach, mas não.

 

Sam diz que a inspiração para suas letras surgem de sua vida e das pessoas que ele conhece. Vivendo ainda no interior, ele é o tipo de sujeito que faz canções sobre a visão de seu pai beijando a testa da mãe morta. Sua sensibilidade pelas pequenas coisas do cotidiano é típica dos grandes contadores de história, transformando essas vidas comuns e banalizadas em peculiares histórias de sobrevivência a uma lógica cotidiana que oprime mais do que tudo. Em “People Watching”, Fender segue nesta trilha e se coloca numa posição anti-Tory, o partido conservador britânico, mas ele faz questão de não se alinhar imediatamente aos trabalhistas, que compõem a oposição imediata aos “torys”. Em entrevistas recentes, Fender diz que a esquerda precisa entender as peculiaridades da população, colocar as tais pautas identitárias em segundo plano e se reconectar com os trabalhadores, atualmente cooptados pela direita. Alguma semelhança com o que temos aqui não é mera coincidência, a crise da esquerda é global, porém, o surgimento de gente nitidamente progressista é sinal de que alguma coisa precisa mudar e mudar rápido. Repito: ter alguém reflexivo assim, escrevendo ótimas canções que vão para o topo das paradas, vendem milhões de álbuns e lota estádios é um bom sinal.

 

Como dissemos, o mérito de Sam não está apenas nas letras, que são ótimas. Na faixa-título, ele abre dizendo: “Vejo pessoas na volta pra casa//Carentes de um brilho de esperança//Me impede de sentir sozinho//Me tira do egoísmo”. A melodia e o arranjo evocam Springsteen e a levada aerodinâmica da canção a conecta com as jovens audiências, lembrando que isso é música pop. O disco todo tem esses elementos convivendo – a relevância das letras e a belezura dos arranjos e melodias. “Wild Long Lie” é outra faixa que evoca o cânon springsteeniano mas o uso de teclados e uma linha de baixo distina levam a canção para outros lados. “Crumbling Empire” também é bem bacana, uma belezura que ultrapassa cinco minutos e denuncia a decadência desse mundo anglo-americano em que a pobreza e a desesperança só fazem crescer. “Little Bit Closer” também é tributária do heartland rock, e traz uma ótima performance vocal de Fender, cujo registro é muito bom. “TV Dinner” lembra um pouco o trovador americano Kurt Ville, enquanto “Something Heavy” tem um quê do Soul Asylum noventista. E “Remember My Name”, a faixa que encerra o álbum, é um pequeno épico springsteeniano de saudade dos avós e da infância, com menção literal do endereço da casa da família no passado e de como tudo isso era importante para o jovem Sam.

 

“People Watching” é um produto do nosso tempo. Suas influências são nítidas e relevantes, mas ele é um reflexo de um cara de trinta anos que não parece disposto a comungar da mesmice e da irrelevância atuais. Parece que Fender quer fazer a diferença e está no caminho certo. Beleza de disco.

 

 

Ouça primeiro: “Remember My Name”,”TV Dinner”, “Something Heavy”, “Little Bit Closer” “People Watching”, “Nostalgia’s Lie”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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