O baixo espacial e essencial de Bootsy Collins
Bootsy Collins – Album of the Year #1 Funkateer
78′, 18 faixas
(Bootzilla)

Bootsy Collins é uma figuraça. Começou na banda de James Brown na virada dos anos 1960/70, os JB’s. Dali pulou para o Funkadelic-Parliament de George Clinton e, no meio dos anos 1970, fundou a Bootsy Rubberband, levando adiante a sua própria versão de funk psicodélico e extremamente sensacional. Daí para a Bootzilla Productions foi um pulo. Enquanto isso, gente como Prince e Rick James despontava como seus herdeiros naturais e, mesmo quando a música negra parecia transformada para sempre, com o advento do hip-hop e da dance music, artistas como De La Soul e Deee-Lite prestaram tributos, homenagens e desfilaram a influência do baixista em seus trabalhos. E, de tempos em tempos, Bootsy, 73 anos, solta álbuns solo sensacionais e cuida de seus projetos comunitários e sociais, ajudando um sem-número de jovens a deixar a criminalidade sob o lema “Funk Not Fight”. Ou seja, Bootsy é o cara e não perde o rebolado (trocadilho involuntário). Ainda usando seus óculos estelares e brandindo seu baixão também em forma de estrela, ele está na área e este “Album of the Year #1 Funkateer” é a prova de que o sujeito continua mandando bem.
Como é de se esperar em um disco assim, há uma penca de convidados presentes, até porque Bootsy nunca foi exatamente um vocalista, mas seu registro malandro está presente em todos os cantos de “Funkateer”, quase da mesma forma em que estava em, por exemplo, “Groove Is In The Heart”, sucesso que colocou o trio novaiorquino Deee-Lite no mapa. São falas, sussurros, até mesmo tentativas de cantar que fazem parte do repertório de Bootsy. Mas ele aparece mesmo é nas linhas de baixo, nos arranjos e na própria produção, assinada pelo próprio e cheia de momentos interessantes. O que fica latente após a audição das faixas, num total que quase chega a oitenta minutos é que Bootsy é um dos mais influentes músicos vivos e em atividade. Os principais momentos em que sua presença se faz sentir são nos híbridos rap-funk, que fazem a maior parte das faixas por aqui. Até mesmo na homenagem a James Brown, em “The JB’s Tribute Pastor P”, o rap faz a condução da letra e da melodia, com vocais de Harry Mack e Daru Jones, com direito a participação flamenjante do trombone flamejante de Fred Wesley, outro monstro egresso da banda de James Brown.
Outro momento sensacional é “Bubble Pop”, que pega emprestada a levada do Parliament da virada dos anos 1970/80 e, ao mesmo tempo, a dinâmica dos primeiros álbuns do De La Soul e faz todo mundo sair pulando. Nos vocais, a dobradinha do veterano Ice Cube e a cantora Fantaazma, que já colaborou outras vezes com Bootsy. A cantora volta em outros momentos do álbum, especialmente em “The InFluencers”, na qual também está presente o Eurythmic Dave Stewart, com sua guitarra e toques na produção. Myra Washington, Kurupt, Matthew Whitaker e Daz Dillinger turbinam os vocais da demolidora “Fishnets”, que reproduz fielmente os momentos mais dançantes e ferozes de Prince, um dos mais conhecidos herdeiros da psicodelia funk que Bootsy ajudou a criar e difundir. A levada é irresistível e o arranjo não deixa pedra sobre pedra, especialmente na dinâmica da bateria, que conduz o trem funky ladeira abaixo.
Em “Satellite”, o arranjo tangencia a maravilhosa “Somebody’s Watching Me”, sucesso de Rockwell em 1984, com direito ao “spacebass” de Bootsy preenchendo os espaços e nova participação de Dave Stewart, que fornece guitarrismos em meio ao caldo viscoso funk. Em “Ubiquitous”. Em “Hundo P”, novamente Fantaazma surge nos vocais e os divide com outro discípulo de Bootsy, Snoop Dogg, que fornece chapação e precisão ao rap dolente que se instala. Em “Pure Perfection” surge o lado romântico-moteleiro de Bootsy, que também cisca nos terrenos mais apimentados do funk, como direito a vozerio indistinto, levada em câmera lenta, os vocais agudíssimos e sexys de Fantaazma, que alterna altos e sussurros. E tem até espaço para uma tiração de sarro com a … inteligência artificial em “I.Am AI” com a levada mais pesada de bateria de todo o disco e um mundo de scratches old school para colocar em xeque a relevância da AI e tudo o que pode haver de consequência, num eletrofunk típico do início dos anos 1980, com sintetizadores, vocoder e o escambau.
Ouvindo a totalidade de canções de “Album of the Year #1 Funkateer”, a gente conclui que o futuro era essa sonoridade maravilhosa que Bootsy ajudou a criar e difundir. Ouvir quase tudo o que se entende por “black music” hoje, é sentir que deixamos este futuro em algum lugar do passado. Ouça e constate.
Ouça primeiro: “I.Am.AI”, “Hundo P”, “Ubiquitous”, “Satellite”, “Fishnets”, “Bubble Pop”, “The JB’s Tribute Pastor P”.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.