“Now And Then” revela a empáfia do fã de rock atual

 

 

Ontem chegou aos ouvidos do mundo “Now And Then”, a canção “final” dos Beatles. Construída a partir de uma fita demo gravada por John Lennon no fim dos anos 1970, ela foi uma das três obras dele a chegar nas mãos de George Harrison, Paul McCartney e Ringo Starr, quando estes decidiram levar adiante o projeto “Anthology”, em 1994. As três canções ficaram de fora do álbum póstumo de John, “Milk And Honey”, lançado em 1982, no qual as últimas gravações dele foram aproveitadas. Na época não havia nem traço da tecnologia que se estabeleceu ao longo dos anos seguintes. Se foi possível trazer “Free As A Bird” e “Real Love”, as outras duas obras perdidas de John, à vida em 1994/95, o mesmo não aconteceu com “Now And Then”. Alegações sobre o estado da gravação e, sobretudo, a precariedade do registro de sua voz, sentenciaram a canção aos arquivos e, quem sabe, ao limbo por quase vinte anos. Até que entrou em cena o cineasta neozelandês Peter Jackson. Responsável pela revisão mais recente dos arquivos dos Beatles, Jackson e sua equipe reencontraram o registro primordial de John e, com todo o aparato técnico de hoje, conseguiram resgatar a voz dele e acenar com a chance de gravar “Now And Then”, cerca de 45 anos depois de sua concepção. O resultado é 100% Beatles, mas, acima disso, 150% John nos anos 1970.

 

“Now And Then” é uma canção de amor, de preocupação com a permanência do sentimento ao longo dos anos, com a força que a gente precisa ter para sentir o mesmo por alguém mesmo com tanto tempo transcorrido. É uma bela declaração de amor a Yoko Ono, a musa de John, a responsável por boa parte de sua formação artística a partir de meados dos anos 1960. Repito sempre esta frase: “quem implica com a presença de Yoko na vida de John, esquece que seu papel foi decisivo na transformação de Lennon no mito que se formou. Sua combatividade política, sua postura diante do mundo, sua atuação como pai, tudo isso tem a ver com a interação com Yoko. E foi da generosidade dela – que cedeu a fita original de Lennon aos beatles remanescentes em 1994 – que temos esta canção, direto do Túnel do Tempo. George, Paul e Ringo participam da gravação. Harrison, morto em 2001, deixou registros nas sessões de gravação para as Anthologies, enquanto Paul e Ringo, que também participaram daqueles encontros, acrescentaram partes novíssimas em 2023. Quem produz é Giles Martin, responsável pelas sensacionais remasterizações que a obra dos Beatles vem recebendo desde a década de 2000. Ele aproveitou as pré-produções de Jeff Lynne, dos anos 1990 e recrutou uma orquestra, que trabalhou sem saber que gravaria algo para uma … canção dos Beatles.

 

Pois bem. Com a canção no mundo, é de se esperar uma comoção generalizada, certo? Bem, sim. Muitos fãs da banda abraçaram a chegada de “Now And Then” como deve ser, um presente. Pense bem: por que diabos os envolvidos no processo criativo se dariam ao trabalho de resgatar uma canção dos Beatles a esta altura do campeonato? O legado do grupo está consolidado há décadas, seu catálogo é imaculado, todas as ações de revisão da obra dos Fab 4 são extremamente criteriosas, bem feitas e respeitosas. Por que então alguém resolveria provocar os fãs de música em 2023 com um artefato que já nasce atemporal? Porque a função da arte é essa, provocar. E “Now And Then” é arte em vários sentidos. Além de ser uma canção pop por excelência – em estrutura, duração, conceitos, estética – ela é uma peça dotada de sentidos únicos. Ela é de outro tempo, foi feita em um contexto que impediria – e impediu durante muito tempo – a sua existência. Ela só foi lançada por conta de um esforço de décadas. Enquanto isso, a música pop de 2023 é lançada após poucas horas num estúdio caseiro, postada online num serviço de streaming, esperando a atenção das pessoas.

 

“Now And Then” vai contra tudo isso. Mesmo assim, ela está longe de ser conservadora ou despertar a nostalgia das pessoas. A rigor, ela é um produto de seu tempo, ou seja, o nosso. Ela é um paradoxo – uma canção dos Beatles, que encerraram suas atividades em 1970 – composta por um dos integrantes, morto em 1980, trabalhada em 1994 e finalizada em 2023. Ela é uma distorção temporal, das mais adoráveis. Mas, ser um produto de 2023 a expõe aos detritos da época atual, que se materializam em comentários lamentáveis feitos sobre sua chegada. Repito – ninguém é obrigado a gostar de nada, concordar com nada, muito menos com meu ponto de vista neste texto. Mas, qualquer fã de música com o mínimo de noção de que ela é produzida num determinado espaço de tempo e que, via de regra, aspira a transcendência deste tempo, precisa celebrar a chegada da música dos Beatles. Já li críticas à arte do single, já vi gente desprezando a produção de Martin e McCartney – veja bem, de Giles Martin e Paul McCartney – bem como atacando a relevância da gravação. Vi gente se referindo a “Now And Then” como “sobra de estúdio do Lennon”. Via de regra, essas pessoas aplaudem gravações de bandas como Foo Fighters, Coldplay, Red Hot Chili Peppers, isso só para ficar num terreno conservador e rock de opinião, pois, via de regra, essas pessoas enaltecem registros de artistas muito, muito menos interessantes ou com uma obra minimamente próxima da dos Beatles.

 

Uma crítica básica e simples é aquela que desmerece “Now And Then” em relação às suas irmãs gêmeas, “Free As A Bird” e “Real Love”, gravadas em 1994/95. Pense: são canções que estão disponíveis para audição há cerca de vinte anos, portanto, já criaram nos ouvintes um sem-número de laços afetivos e referências que são fruto do tempo transcorrido. “Now And Then” chegou…ontem. Além disso, é uma triste tendência do ser humano optar pela acomodação pela segurança do que conhece. Sendo assim, esta nova canção ainda tem um caminho a percorrer, uma trajetória a criar, um lugar a buscar no imaginário dos fãs de música. Ela estaria num Top 10 da banda? Num Top 50? Não sei. No meu caso, “Free As A Bird” se tornou uma das minhas canções preferidas dos Beatles em todos os tempos. Além da beleza da melodia e do resultado final, ela me proporciona lembranças e associações que são só minhas e que significam muito para mim. Mas isso não faz dela uma unanimidade, pelo contrário. Sendo assim, a “canção final” dos Beatles ainda tem muito o que viver. Ainda bem.

Se você é um dos fãs audiófilos, com acesso aos estúdios de gravação mais modernos, com uma sensibilidade ímpar e um conhecimento/capacidade de expressão à prova de falhas, além de uma vasta experiência no assunto, dê mais uma chance à pobre obra dos Beatles. Por favor.

Só falando assim.

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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