Nosso texto sobre a Copa do Mundo
Eu adoro Copa da Mundo. Gosto muito mais da competição entre as seleções do que da perspectiva de algum triunfo da Seleção Brasileira. Ou seja, eu acompanho a Copa pelo futebol, não tenho a visão restrita da torcida pelo Brasil, minha vontade é que os melhores sejam premiados com vitórias incríveis, cheias de felicidade, que, por sua vez, causam também derrotas imperdoáveis, cheias de drama. Sendo assim, não fiquei nada triste com a eliminação brasileira diante da Croácia, uma vez que este resultado foi típico do esporte futebol. Um time que é menos talentoso individualmente, tem a capacidade de derrotar o mais forte através de tática, esforço coletivo, disciplina e superação. Essa foi a história de Croácia x Brasil. Um triunfo da inteligência sobre a individualidade e a fragilidade emocional. Ponto.
Mas a Copa em si foi uma competição atípica. Isso nada tem a ver com a presença de Marrocos entre as oito melhores equipes do mundo (escrevo este texto antes do jogo da seleção africana contra Portugal). Tem a ver com o clima no ar, com a estranheza diante dos costumes cataris, expostos ao mundo diante das câmeras de TV e Internet. Tem a ver, sobretudo, com a revelação da futilidade que é ganhar uma Copa em pleno 2022, num tempo em que os grandes campeonatos europeus dominam o esporte e tornam a Europa o grande centro do futebol, numa manifestação de poderio econômico, político e estratégico. Sim, porque, se pensarmos bem, desde 2002 não há um título mundial para uma seleção fora da Europa. Desde o advento do neoliberalismo como política econômica hegemônica (a partir dos anos 1990), que o domínio europeu se estabeleceu e isso não é fruto do acaso.
Vejamos: O Brasil venceu em 1994 e 2002. Os títulos de 1990, 1998, 2006, 2010, 2014 e 2018 foram para seleções europeias e agora, 2022, temos quatro esquadrões do Velho Continente ainda na disputa, contra um time africano e a seleção argentina. Isso não é fruto do acaso. Os esquemas táticos, a formação de jogadores, a balança comercial de compra e venda de craques, a força econômica monolítica dos grandes clubes europeus, possuídos por sheiks e fundos de investimento mostra que o futebol, há muito tempo, é um negócio de vulto astronômico. E isso, claro, haveria de contaminar a própria disputa, o equilíbrio entre os times, as escolhas de jogadores, vinculados a esquemas mundiais de marketing e exposição de marcas, com lucros altíssimos. E, como disse o padre Julio Lancelotti num comentário sobre a Copa por estes dias, “o esporte é um big business com simulação de atitudes morais e éticas”. Ou seja, esta lógica comercial acaba por se travestir de comportamento e conduta a ser julgada, apreciada e imitida por milhões.
Tal situação leva a Copa do Mundo para o Qatar, um país sem qualquer tradição no futebol, governado por uma monarquia autocrática, que, entre outras determinações, impediu, entre outra coisas, manifestações de apoio às comunidades LGBTQIA+ e o consumo de bebida alcóolica. A Fifa, entidade mundial que gere o futebol, capitulou ante a intransigência do país sede, certamente por conta dos bilhões de dólares que a realização da Copa no Qatar gerou para seus cofres. Não adiantou os protestos de seleções cascudas como a alemã e a inglesa, o Qatar não é lugar para este tipo de tolerância e ponto final. Ao fim e ao cabo, o dinheiro acabou falando mais alto.
Como nós torcemos pelo futebol e não por uma ou outra seleção nacional, vimos uma Copa em que não houve absolutamente nenhuma novidade tática. Talvez a última grande inovação tenha sido o tiki-taka espanhol em 2010, que levou a Espanha a vencer o seu primeiro mundial. Em 2014 e 2018 o nível técnico esteve mais alto, seja pela acachapante vitória alemã no 7 x 1 contra o Brasil de Felipão em 2014, seja pelo desempenho da “geração belga” ou pelo triunfo francês em 2018, a impressão que tivemos foi que estes torneios ofereceram jogos mais interessantes e taticamente complexos. Em 2022, não fomos além da admiração pelas zebras, encarnadas nas campanhas de Japão e do próprio selecionado marroquino, que jogaram/jogam na base do entusiasmo e absoluta entrega dentro de campo. E, por fim, talvez reste uma sombra de interesse pelo desempenho de Portugal, no fim de ciclo de Cristiano Ronaldo, que mais parece atrapalhar do que ajudar o jovem selecionado lusitano. E só.
Isso, repito, não é fruto do acaso. As agendas e calendários de competições privilegia os clubes europeus e as outras ligas ao redor do planeta orbitam estas datas e, ouso dizer, não mudará até que algum tipo de igualdade seja estabelecido. Sem falar que, hoje em dia, clubes como Manchester City ou Real Madrid são, por definição, seleções mundiais, muito melhores do que a maioria esmagadora dos selecionados nacionais que jogam a Copa do Mundo. As novíssimas gerações de torcedores já percebem isso, demonstrando um interesse crescente nas ligas espanholas, inglesas ou italianas, em detrimento das competições continentais de seleções. E, quando elas acontecem, nenhuma é maior do que a Eurocopa. A Copa América, a Copa Oro, a Copa Africana de Nações ou a Copa da Ásia não fazem frente, não por não contarem com atletas nascidos dentro das fronteiras que elas contemplam, mas por eles jogarem nos grandes clubes europeus desde muito cedo. Não raro, trocam de nacionalidade por conta do conforto material oferecido e enfraquecem ainda mais os selecionados locais. Eles estão errados? Não, é apenas a lógica neoliberal se impondo.
Além do campo de jogo, nos restou a cobertura televisiva e online do evento e, neste quesito, tivemos, certamente, a pior experiência possível. A Globo, detentora dos direitos de transmissão para TV aberta, ofereceu o seu habitual padrão de cobertura, com muitos repórteres, âncoras, jornalistas e programas especiais. Ficou evidente que a emissora não tem um substituto para o folclórico Galvão Bueno, que se aposenta no fim desta Copa. A novidade ficou por conta da ótima Renata Siqueira, que debutou nas transmissões de alguns jogos, mas que ainda perde em importância para Luiz Roberto e Cleber Machado, péssimos, pernósticos, exagerados, desnecessários. Enquanto isso, na subsidiária da emissora, o SporTV, dois locutores muito melhores, Milton Leite e Everaldo Marques, pouco ou nada foram ouvidos.
Os comentaristas confirmaram a sua nulidade absoluta em termos de conhecimento técnico. Quem acompanha futebol há mais tempo – desde antes de 1994, por exemplo – sabe que o jornalista esportivo é a figura mais indicada para cobrir e comentar jogos. São caras com mais conhecimento e livres da experiência das quatro linhas, o que lhes permite pontos de vista e opinião mais engajadas do que ex-jogadores, geralmente com vínculos históricos e favoricimento/rivalidades presentes. Além disso, o futebol, como se tornou um negócio mundial, comporta o surgimento de teóricos rasteiros, que falam um idioma tatiquês vazio e inócuo, que, não raro, serve de refúgio para os comentaristas rasteiros. Salvo exceções, como Casagrande ou – para minha surpresa, o novato Richarlyson – os ex-jogadores fracassam retumbantemente. Desse jeito, fica fácil para gente como Juca Kfouri, José Trajano, Arnaldo Ribeiro, Eduardo Tironi e Mauro César Pereira oferecerem a única opção em que a opinião é realmente livre. Se a Globo há muito é uma emissora institucional da CBF, o programa Posse de Bola, transmitido pelo UOL, é um oásis de lucidez em meio a um exército de zumbis entregues a conchavos e acordos.
E, por fim, esta Copa foi marcada – para nós – pela questão envolvendo o bolsonarismo e o uso da camisa amarela da Seleção Brasileira. Confesso que isso me atrapalhou bastante numa eventual torcida pelos atletas, uma vez que, em sua maioria, parecem simpatizar com a postura do presidente derrotado nas urnas. Entre eles, o garoto propaganda máximo da Seleção, Neymar, que chegou a prometer gols para bolsonaro e levar a taça – se fosse conquistada – para ele. Neymar é o retrato do futebol brasileiro na atualidade. Um adulto infantilizado, recalcado, ressentido, que nunca teve capacidade para lidar com a idolatria. Sua presença na seleção significa egoísmo e choradeira em campo, fatos que o levaram a ser odiado por vários jogadores ao redor do mundo.
Neymar exerce liderança sobre os jogadores mais jovens do Brasil. Eles imitam seu penteado, atitudes, comemorações e postura, num mecanismo de repetição que gera, em muitos torcedores, um crescente desinteresse pelo desempenho do país no futebol em nível internacional, preferindo, via de regra, a torcida por seus clubes do coração. Não os culpo. Nem todo mundo tem estofo para assistir – e endossar – um adulto de 30 anos reclamando que não é compreendido, não é amado, não é visto ou tratado como ele acha que deveria. Tudo isso com um salário astronômico, uma conduta suspeita na hora de prestar contas ao fisco e, mais que tudo, uma vida pessoal em que os excessos e o hedonismo parecem dominar. Sendo assim, pouco resta de futebol para ser observado num time brasileiro tão fraco, comandado por um técnico sem carisma, sem experiência internacional, sem comando e refém de contratos e conivências mil.
Seja qual for o campeão desta Copa, ele terá merecido o título mais do que o Brasil. Nossa torcida fica por uma conquista inédita de Portugal, que foi roubado na Copa de 1966 ou pelo tricampeonato argentino, um país que os torcedores sem-noção amam odiar, mas que trata o futebol com muito mais carinho e respeito do que nós. Em 2026, um novo formato de Copa – com 48 seleções – a ser testado no eixo Estados Unidos-México-Canadá porá o esporte à prova novamente. Sinceramente, não sei o que esperar, mas, se algo não for feito na Seleção Brasileira, seguiremos como coadjuvantes de luxo e assistindo a glória alheia.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.