Mark Guiliana traduz o jazz para os 2020

 

 

 

 

Mark Guiliana – MARK
36′, 10 faixas
(Edition Records)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

O americano Mark Guiliana é o tipo de músico que, aos vinte e poucos anos, tinha um grupo de “garage jazz”. Era um trio, chamado HEERNT, e chegou a gravar um álbum, “Locked In A Basement” em 2006, mas foi como músico de estúdio e integrante de banda que o baterista, nascido em New Jersey, em 1980, ganhou a quilometragem que tem hoje. Não por acaso, quando David Bowie estava recrutando músicos vibrantes, jovens e pertencentes a uma novíssima cena de jazz rock de Nova York, o nome de Mark foi cogitado e logo aceito pelo velho David. Não por acaso, o apuro instrumental daquele último álbum de inéditas, sua própria sonoridade e conceito, tinha a ver com essa derradeira dança sem perder de vista que o tempo continua e o futuro, como já dizia o poeta, sempre vem. E Mark Guiliana pode ser o futuro do jazz imaginado hoje, num tempo em que a tecnologia dá e exige muito dos músicos que se aventuram em carreiras bem longe do mainstream. Sendo assim, temos este conceitual e belo álbum “MARK”.

 

Como o nome já insinua, é um trabalho em que Guiliana cobra lateral, escanteio e corre pra área para tentar a cabeçada. Seria muito fácil e banal que ele oferecesse um trabalho em que apenas houvesse bateria e ritmos percussivos. E seria repetitivo, uma vez que ele lançou “Mischief”, no ano passado, um álbum em que experimenta timbres eletrônicos e tambores humanos com resultados impressionantes. Ele já fez algo assim no passado recente, quando dividiu com o pianista Brad Melhdau a autoria de “Mehliana: Taming the Dragon”, um trabalho em que também eram ultrapassadas várias fronteiras da música eletrônica e do jazz. Em “MARK”, Guiliana abre espaço para o uso de outros vários instrumentos muito além da bateria, como, por exemplo, teclados, sintetizadores, celeste, mellotron e novamente todo um arsenal de dispositivos eletrônicos de diferentes amplitudes, que, unificados, resultam em dez faixas que podem conter muito do que pode ser considerado jazz em tempos como os nossos. Se no passado, os grandes mestres se notabilizavam por fluência em um instrumento, hoje, 2024, uma infinidade de possibilidades se abre diante do músico, que pode ser fluente em muitas delas. Guiliana prova isso com o novo álbum.

 

O baterista também assina a produção das faixas e toda tudo sozinho, aumentando ainda mais o tom de tapeçaria sonora que emerge dos temas. A ideia também passa pela expressão mais completa e ramificada das emoções e inspirações que comandam o processo criativo de um artista com domínio de informações e meios de confecção sonora. Tem a ver com a habilidade de casar possibilidades com expressão, algo que não parece fácil. Certamente há momentos em que Mark investe sobre o terreno do ritmo e do groove, sempre com muito bom gosto. Canções como “Just Listen” e “Ritual”, por exemplo, têm nas levadas e uso dos timbres de tambores o seu meio de condução e existência. É bacana ver como os grooves e estruturas repetitivas são privilegiados em favor de improvisos e viagens instrumentais, mostrando que há um apreço pela objetividade do resultado.

 

A “alma de baterista” de Mark está presente mesmo quando ele utiliza os elementos que não são – ou não deveriam ser – percussivos. Há vários momentos ao longo do álbum em que ele se mostra lírico e sutil em manejos de sintetizadores e várias camadas de som. Em “Kamakura”, ele alterna sons de vibrafone e marimbas com sintetizadores e outras engenhocas, obtendo uma sonoridade ingênua, quase infantil, que apresenta esta possibilidade ao ouvinte. Esta ingenuidade dá lugar a uma melancolia palpável na belíssima “Costello”, basicamente uma melodia conduzida ao piano com intervenções de celeste, obtendo resultados belíssimos. Em “Question Mark” há o cruzamento das vertentes percussiva e “sintetizadas”, resultado numa faixa ritmica meio technopop minimalista, que soa moderna, climática e revisionista, tudo ao mesmo tempo. “Alone”, como o nome já diz, é outro tema executado, dessa vez apenas no piano, mostrando uma influência insuspeitada de Bill Evans, algo que também se manifesta na última faixa do álbum, a linda “Peace, Please”.

 

“MARK” é um disco moderno e instigante. Deve ser ainda mais bacana para quem é músico e tem possibilidades de registrar seus esboços e vê-los se transformar em temas finalizados. Mark Guiliana, certamente, é um dos grandes nomes dessa música instrumental híbrida, fluida e moderna, que se chama hoje, assim como no passado recente, jazz.

 

 

Ouça primeiro: “Alone”, “Peace, Please”, “Costello”, “Question Mark”, “Kamakura”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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