Líder do Violins volta em disco próprio
Beto Cupertino – Auto
27′, 8 faixas
(Independente/Tratore)
Um mandamento da boa crítica musical é: não feche suas listas de melhores do ano até o início de dezembro. Parece óbvio, mas há veículos aqui e lá fora que insistem em não tomar conhecimento deste período entre o fim de novembro e o início de dezembro, supondo que nada mais de interessante surgirá. Estão errados, sempre. Veja, por exemplo, o caso de Beto Cupertino. Seu terceiro álbum solo, “Auto”, surge no começo de dezembro, discretamente, sem alarde, com menos de meia hora de duração e oito canções. Daí você vai ouvir o que ele tem a dizer – e ouvir Beto é algo que devemos sempre fazer – e se depara com algumas das melhores letras em português de 2024. Não é segredo, visto que ele é um dos melhores escritores do rock independente brasileiro deste início de século, sempre com uma crítica desesperançosa à sociedade e ao ser humano. Ao mesmo tempo e paradoxalmente, Beto é um humanista e, como tal, acredita na espécie, no poder pessoal que todos têm para, em algum momento, de alguma forma, possamos melhorar e, a partir daí, reparar as injustiças e contradições da sociedade. Ele é uma espécie de pessimista otimista, se é que isso é possível.
Beto declarou em seu perfil no Instagram que este álbum próprio – ele acha “álbum solo” uma expressão meio brega – é o primeiro em que ele fez tudo. Da composição, à execução, masterização e mixagem, tudo o que se ouve é “sua culpa”. Daí o título ser tão apropriado e dar ensejo a novas empreitadas similares num futuro próximo. Beto é um cara que, sob a aparência de uma pessoa simples e tranquila, esconde uma persona artística inquieta e constantemente atenta ao que está em sua volta. Seu trabalho no Violins, além de extremamente sincero e fiel ao que o atormenta, é indicativo de um daqueles artistas que não se deixa seduzir pelas tentações artísticas ou concernentes à fama. Ele é um cara que encontrou um espaço para comunicar o que sente e pensa, usando como veículo sua habilidade lírica e musical. Funciona há mais de vinte anos com o Violins e, desde 2017, com esses trabalhos “próprios”. O interessante neles é que as sonoridades vão se modificando aos poucos, como se maturassem ou indicassem as inspirações do artista de acordo com o tempo. Sabemos quem canta e o que canta, mas a forma como isso acontece é agradavelmente surpreendente.
Nas oito faixas de “Auto”, Beto obtém uma sonoridade que oscila entre bandas como Dashboard Confessional ou Death Cab For Cutie, com guitarras pronunciadas, mas doces, que se dobram a alguns teclados e se deixam levar pela boa cozinha de baixo e bateria sempre presentes. De vez em quando surge um efeito de cordas aqui, um naipe de metais ali, mas tudo é compacto e bem pensado. Talvez a maior proeza de um artista que toca todos os instrumentos e responde por todo o processo criativo e de execução de um álbum seja soar como se fosse uma banda e Beto consegue isso em alguns momentos de “Auto”. Não que isso seja seu objetivo, a coisa simplesmente acontece de forma natural. As letras, ótimas, todas, falam dessa ambiguidade de sentimentos e de uma modalidade conformada de desilusões e fracassos pessoais, algo que naturalizamos ou não, mas que vivemos quase sempre. Sua postura varia da primeira para a terceira pessoa ao longo das canções, variando de ponto de vista e oscilando entre a confissão e a crônica de costumes. Dá pra apenas ler as letras como se fossem textos, o que é uma característica de sua escrita desde o longínquo “Aurora Prisma”, de 2003, quando o Violins começou a cantar em português.
Das oito faixas de “Auto”, gosto especialmente da primeira, “Público Pagante”, na qual ficamos sem saber de ele está falando de uma experiência própria ou testemunhada, mas o verso “A morte do belo//Cria um elo//Como se um brejo fosse um mar” entrega que isso pouco importa quando há tanta informação trocada e contrabandeada. Por fim, “O público pagante//Frio e exigente//Aplaude o seu fracasso pra sempre” parece sentenciar o que acaba acontecendo para todos. Outra preferida é “Tamanhos”, que reflete sobre a nossa pequeneza versus o gigantismo daquilo que queremos ter e viver, seja algo, seja alguém. Figuras como “dessa cidade que há em você” ou “eu sinto que moro//na praia que adoro//e que fica em você”. Em “Sonhos de Segunda Divisão”, ele discorre sobre a tangibilidade dos sonhos e aspirações se esfacelando diante das incertezas e das dificuldades da vida pós-pós moderna. E, por fim, a vinhetinha “Obrigado por Nada”, com uma crítica aos falsos pregadores, coachings e demais parasitas da miséria existencial alheia.
“Auto” é uma porrada bem sutil, travestida de “disco pequeno”, mas que contém momentos de grande intensidade. Sempre que ouço alguma canção de Beto, me pergunto como seria se ele fosse universalmente conhecido de todos. Talvez sua mágica esteja no fato de que, além de não ser, ele gosta disso e, talvez, se divirta. Vá saber. Grande.
Ouça primeiro: “Tamanhos”, Público Pagante”, “Sonho de Segunda Divisão”, “Obrigado por Nada”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.