Essa Lua Tá Diferente – com Chico Buarque
Dia 20 de julho é o 50º aniversário do primeiro pouso lunar. Neil Armstrong, representando seu país e a Humanidade, deu passos vacilantes para fora do módulo lunar da Apollo XI e deu uns pulos no nosso satélite mais próximo. O feito ainda é sensacional meio século depois, tanto que suscita uma das teorias da conspiração mais populares, a de que tudo não passou de uma farsa encenada pelo governo americano, visando ganhar a corrida espacial da URSS e honrar a promessa do presidente Kennedy, que dissera, em seu discurso de posse, no início da década de 1960, que os Estados Unidos iriam à Lua antes do fim dos próximos dez anos. Deu no que deu.
Acho difícil pensar numa farsa, apesar da minha querida série Arquivo X dizer em algum capítulo que, sim, foi tudo encenado. O que não foi farsa, pelo contrário, foi o rebuliço cultural que o planeta experimentou com este feito, tanto depois dele ocorrer de fato, como nos meses que o antecederam. Parecia, de fato, que havíamos chegado no futuro projetado para aqueles tempos, uma espécie de primeira etapa da vida que teríamos hoje, com carros voadores, colônias espaciais e uma prosperidade material conjugada com maturidade espiritual. Não aconteceu. O que houve, de fato, na década de 1960, foi um avanço de pautas humanistas e progressistas, que deram àquele tempo uma aura única, que ressoa até hoje em nós. Entre tantos temas – revolução sexual, Guerra do Vietnã, luta pelos direitos civis, surgimento de uma nova esquerda – um tem destaque: a revolução feminina a partir da pílula anti-concepcional. Foi uma espécie de apoteose de várias exigências das mulheres, em relação à sociedade ocidental, atacando/contestando casamento, direito de voto, de existência e livre determinação em relação ao homem, marido, família e opção sexual. Tudo começou ali.
De uma forma geral, pousar na Lua está relacionado com modernidade, mesmo com essas pautas progressistas. Andar no nosso satélite era tão moderno e revolucionário como comprar um anti-concepcional na farmácia, tudo dentro deste mesmo combo de atitudes e atos arrojados. São vários os artistas – músicos, cineastas, escritores – que captaram essa mudança e a transformaram em inspiração para suas obras, mas, há dias que não consigo pensar em ninguém além de Chico Buarque. Mas – dirá você – o Chico? Que música ele fez para o homem na Lua? Eu te direi: uma, mas não para o evento da Apollo XI, mas para a mulher moderna dentro deste novo pacote de atitudes moderníssimas. E fez brilhantemente. A canção é a clássica “Essa Moça Tá Diferente”.
Composta na Itália, durante o autoexílio de Chico durante um momento particularmente duro dos governos militares, a canção foi gravada em 1970 e incluída no repertório do disco “Chico Buarque vol.4”. A letra e melodia – registradas inicialmente por Chico com voz e violão – foram devidamente encorpadas no Rio, com metais, bateria, baixo e percussão, transformando-a num samba-jazz bem azeitado. Na produção, César Camargo Mariano e Erlon Chaves a revestiram de modernidade inegável. O que surgiu daí foi, não só uma das canções mais sensacionais do repertório de Chico, como algo único neste mesmo contexto: saía a tradição do samba e entrava o moderníssimo híbrido com o jazz, algo que era sintonizado com artistas como Meirelles e Copa 5 Tamba Trio, por exemplo. Chico sempre foi mais astuto com suas letras, do que em arranjos e melodias, um traço de sua obra.
Com “Essa Moça…” ele chegou a outro patamar. A letra fala de uma jovem mulher que já não é mais a mesma. Se pensarmos no contexto da época – 1969/70 – a personagem da letra foi afetada pelas notícias que vinham de fora e repercutiam nos jornais daqui. Chico vai enumerando o que a moça fazia e já não faz mais. Na maioria das situações, a personagem da letra já não se encanta pelas estratégias de conquista do cantor, deixando de se importar com poesias, concertos de flauta e outras situações. Chico faz alusão à “Carolina”, outra composição sua, dizendo que a “moça é a tal da janela, que eu me cansei de cantar, que agora está só na dela, botando só pra quebrar”. É como se Carolina deixasse de lado sua postura conservadora e inaugurasse uma nova fase em sua vida, inclusive “sambando escondida” e “desinventando o som”, mostrando que a moça estava atenta aos sons e posturas sintonizadas com o tempo que havia chegado.
Mas…e a Lua?
A Lua entra na letra de forma muito sutil, porém marcante de seu caráter moderníssimo. A certa altura, Chico diz que a moça “quer ver o astronauta descer na televisão”, mencionando uma das primeiras transmissões via satélite mundiais da história, na qual o pouso lunar de Armstrong e seus companheiros entrou nas telinhas das TVs do planeta, inclusive nas dos toscos aparelhos preto e branco disponíveis por aqui naquele 20 de julho de 1969. Sendo assim, ver o pouso na Lua, para a moça da canção, constitui num ato tão moderno quanto não ligar pra cantadas vazias, desejar ouvir música moderna e, soltando a imaginação, comprar uma cartela de anticoncepcionais na farmácia, sair com quem desejasse e, por tabela, não gostar nada da ditadura civil-militar vigente no país da época.
É como se a Lua deixasse de ser um disco prateado para se receber de presente em poesias de gosto duvidoso e passar a ser um destino necessário para se chegar ao futuro, tempo no qual muito do conservadorismo careta e que teima em assombrar o Brasil, ficasse para trás. Chico, na sua genialidade, sacou a relação entre a Lua e a mulher daquele tempo, ambas modernas, desejando ser vistas de outra forma.
Gênio é pouco.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.