A não-nostalgia de “Retratos Fantasmas”

 

 

 

Eu já era quarentão quando decidi fazer minha graduação de História. Devia tê-la feito em 1988, quando saí do colégio, mas uma série de mal entendidos me arremessaram numa esteira de cursos e perspectivas que, para o bem e para o mal, me fizeram ser quem sou. Fiz um período de Sociologia e nove de Direito. Depois cursei Jornalismo, a única faculdade que concluí até esta graduação de História. Entre ambas, quase trinta anos de diferença. Gostei tanto que fiz um Mestrado em História Social. Cheguei a passar para o Doutorado, mas a pandemia, uma separação e uma série de mudanças na vida, me fizeram ficar apenas com o título de mestre. Mas ainda dá tempo, quem sabe. O que quero dizer com isso é que estudar o estudo da História – mais do que os fatos em si – me fez perceber a importância da noção de passagem do tempo. Ou do Tempo, com maiúscula, e seu transcorrer. Tudo está na dependência estrita dele; nós, os fatos, a visão, a perspectiva, enfim, tudo mesmo. Nada escapa. Ter essa noção me deu uma certa tranquilidade e me ajudou, por exemplo, a lidar com a nostalgia, algo que me vitimava com a ideia de que as coisas eram melhores antigamente. Vi que tudo existe e existiu em seu próprio tempo. Entendi que a nostalgia exacerbada também é, em si, uma característica advinda da percepção do tempo em uma determinada época e, no nosso caso, pode até ser uma eficiente estratégia de mercado. Porém, nada existe, ainda que de forma deturpada, sem um fundo de verdade.

 

O que quero dizer com isso é que, sim, sentimos saudades do que já vivemos. Não é novidade, ainda que a tal percepção de que tudo aconteceu em seu tempo certo tenha, sim, me dado conforto. Isso não impede que relembremos fatos, eventos e, a partir deles, contemos histórias, através de memórias. É disso que se trata “Retratos Fantasmas”, o mais recente filme de Kleber Mendonça Filho. A rigor definido como um “documentário”, o longa vai muito além disso, chegando a tornar quase impossível – ou inadequada – a sua identificação com um único gênero de cinema. Porque “Retratos” é um filme altamente emocional, sem ser piegas ou nostálgico. Ele é, sim, um aceno ao passado, mas com a certeza de que, bem, ele passou. A mensagem que as imagens passam ao espectador trazem um sem-número de significados e sentidos, sendo, a meu ver, o maior deles a certeza de que as vivências nos trazem até o presente e, a partir disso, temos as nossas escolhas sobre como pensar o que já passou e o que virá. Pode ser mais fácil encarar “Retratos” como uma mera peça de nostalgia, mas eu me permiti achar que Kleber Mendonça nos ofereceu a sua visão adquirida com o tempo e a sua consequente capacidade de refletir e produzir memória. “Retratos Fantasmas” é isso, uma peça de memória em todo o seu esplendor e importância.

 

O trabalho de pesquisa e montagem é impressionante. Kleber e sua equipe conseguem estabelecer um painel multidimensional da cidade do Recife, como se fosse uma aula de como olhar para os tempos simultaneamente. E ele ainda teve a metodologia correta ao usar, na primeira das três partes do longa, a sua vivência em casa para mostrar como adquiriu a capacidade de perceber os detalhes e as nuances, utilizando essas habilidades em conjunto com o amor ao cinema. Contando a sua própria história e de um apartamento em Recife, no qual viveu com sua mãe e irmãos, depois usando o imóvel como locação para seu filme “O Som Ao Redor” (2012), entre outros detalhes, Kleber mostra como formou sua opinião e percepção sobre vários detalhes cotidianos e familiares. Tais fatos foram se entrelaçando e formando uma teia de sentidos, que o enredou, fornecendo a chance formar sua capacidade crítica e observadora. Em “Retratos” é possível ver o resultado desse aprimoramento, digamos, existencial e inevitável.

 

“Retratos Fantasmas” conta, em sua maior parte, a história dos cinemas do centro de Recife, com observações críticas e uma profusão de imagens exuberantes, filmadas ou fotografadas, que, não só reconstituem várias nuances da capital pernambucana em seus aspectos culturais e sociais, como também servem para fundamentar alguns comentários econômicos bem pertinentes. A passagem do tempo, neste caso – e no de quase todo centro de cidade grande no Brasil – aponta para uma inequívoca decadência material, fruto das mudanças de fluxos e deslocamentos humanos dentro do espaço delimitado. Com isso, os cinemas foram perdendo sua importância como centros culturais espontâneos a céu aberto e o todo urbano foi se tornando irreconhecível com o passar dos anos. Quem vive numa grande capital brasileira há um certo tempo tem o seu quinhão de referências que se perderam, sobretudo de salas de cinema, elas mesmas se tornando fantasmas arquitetônicos. O Rio, por exemplo, é pródigo em corpos desencarnados de espaços desta natureza. O bairro em que vivi minha juventude, Copacabana, tinha uma imensa concentração de cinemas, todos hoje transformados em lojas, drogarias, academias de ginástica, igrejas. Kleber mostra que, em Recife, esta lógica também existe.

 

Mas arrisco a dizer que o maior mérito de “Retratos Fantasmas” não é a detalhada pesquisa ou a montagem exuberante. Tampouco o ótimo roteiro/narração do próprio diretor. É a possibilidade dele poder oferecer sua própria contribuição para este universo em fluxo contínuo. Ao expor todas as informações em seu filme, Kleber Mendonça se insere, não só como realizador de produções audiovisuais, mas como um estudioso, um pesquisador, um guardião de uma memória que, como deve ser, é oferecida à sociedade. A partir de seu filme, gerações no porvir terão acesso a esta história de idas e vindas no tempo, de personagens únicos, de vidas, fotos e registros que existiram em função dessas extintas salas de cinema. Kleber sabe que, ao realizar este filme, conseguiu trazê-las de volta do passado e torná-las vivas no presente. Por isso digo que “Retratos Fantasmas” não é um filme nostálgico, pelo contrário. Ele é uma audaciosa subversão ao tempo, um contrafluxo. Talvez um milagre. Não tenho palavras para definir a emoção que senti ao ver um trabalho tão belo e generoso. Não deixem de ver, sob nenhuma circunstância.

 

PS: todos temos os nossos fantasmas. Não há como evitar.

 

PPS: “Retratos Fantasmas” entrou na programação da Netflix em 02 de novembro de 2023

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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