A melancolia ímpar de Fernando Catatau

 

 

 

Fernando Catatau – Fernando Catatau

Gênero: Alternativo

Duração: 55:10 min.
Faixas: 11
Produção: Fernando Catatau e Dustan Gallás
Gravadora: Independente/Tratore

(4 / 5)

 

 

O nome de Fernando Catatau geralmente aparece associado apenas a seu grupo, Cidadão Instigado. Mas basta dar uma olhada nas fichas técnicas dos trabalhos da música brasileira nos últimos anos e veremos que o homem já compôs com DJ Dolores, Karina Buhr, Otto, Karine Alexandrino, Vanessa da Mata, Kassin, Rica Amabis, Céu, Kiko Dinucci, Thiago França e Juçara Marçal. Catatau já tocou com Nação Zumbi e Los Hermanos, entre outros. Cantou com Arnaldo Antunes, Siba, Guilherme Held, e Juçara Marçal (em “Lembranças Que Guardei”, do ótimo e recente Delta Estácio Blues, de 2021). Ele também produziu os discos “Iê Iê Iê” (2009), de Arnaldo Antunes, “Avante” (2012), de Siba, e “Viagem ao Coração do Sol” (2018), do Cordel do Fogo Encantad. Ou seja, Catatau é um cara que vai muito além do trabalho que o liga à sua banda, celebrada e bombada – com muita razão – no início dos anos 2000. Com o Cidadão foram quatro álbuns e este disco homônimo – o primeiro que Fernando assina sozinho – bem que poderia ser outro lançamento da banda. Poderia, mas Catatau quis diferenciar estas canções em relação a produções anteriores, com razão. Saem os questionamentos da juventude e entram reminiscências, nostalgias e romantismo, típicos da maturidade. E esta mudança é bem-vinda.

 

“Fernando Catatau”, o disco, exige uma audição dedicada. Não adianta colocá-lo como trilha sonora de seu trabalho diário. Não adianta ouvi-lo nos fones indo e vindo pela cidade. Em ambos os casos, uma vez feito o mergulho em suas escuras e densas águas, o ouvinte estará irremediavelmente capturado pelo universo de melancolia que permeia as doze faixas. São muitas canções lentas, contemplativas, noturnas, embaladas por uma banda que tem o também Cidadão Instigado Dustán Gallas, nos sintetizadores, baixo e outros instrumentos e Samuel Fraga, na bateria. Além deste núcleo duro, orbitam alguns convidados como a cantora Yma, a vocalista trans Melindra Lindra, Giovani Cidreira, Juliana R, enfim, um grupo de artistas com quem Catatau se sentiu à vontade para lançar este trabalho confessional, revelador e, ao mesmo tempo, corajoso, de um artista que surge oferecendo, ainda que com metáforas e alegorias, um retrato preciso de sua alma num momento de pandemia. Entre idas e vindas à Fortaleza, sua cidade natal, morando por lá e em São Paulo, Catatau sintetiza suas influências e se apropria delas.

 

Como dissemos, o álbum não é dançante ou simples de ser ouvido. Seus arranjos são lentos, como se misturássemos Pink Floyd com Belchior logo na primeira faixa, “Raios Na Escuridão”, que apresenta um lado ainda meio obscuro na obra de Catatau: o romantismo. Aliás, o álbum tem momentos em que este sentimento aflora de maneira espontânea e se espalhar por arranjos e vocais, através das letras que o homem segue escrevendo, caso da explícita “Completamente Apaixonado”. Como também é artista plástico, Fernando tem uma visão, digamos, multifunção, algo que transpassa, por exemplo, para uma canção como “Os Monstros”, com quase seis minutos de duração, em que mistura ficção científica com empatia, num bem dado nó narrativo, com espaço para versos como “os monstros já me viram e eu, me tremendo todo, fiquei rindo”. O arranjo lembra algo que poderia ser de Arnaldo Baptista, o que, convenhamos, é sensacional.

 

Um dado interessante do álbum de Catatau é a presença de piano e sintetizadores em vários arranjos. As teclas fornecem um veludo estranho para a maioria das faixas, variando em intensidade dramática, mas sempre unindo as composições pela melancolia. Assim é com a trinca “Nada Acontece” (com Cidreira e Juliana R), “Não Há Mais Nada A Dizer” e “Luz Do Fim De Tarde”, dramáticas em medidas distintas mas com parentesco inegável. “Tempos Sombrios” já vai numa onda meio Elton John, com um andamento que é derivado do blues pianístico mais habitual, porém, permeado por efeitos aqui e ali, além da voz de Catatau, que mais parece um desses sujeitos que andam pelas ruas com uma placa na qual se lê “o fim está próximo”. Há espaço para uma crítica social bem aplicada em “A Fraternidade”, com versos como “Eles estocavam seus escravos de manhã//Pois ao meio dia era hora de comer//E a sociedade aplaudia sem saber//Que na realidade esperavam a tal hora de morrer”. E o flerte com o brega, algo que também marca a carreira de Catateu, surge bem resolvido em “Sinceramente” e na faixa de encerramento, “Quando o dia amanhecer”, esta última com participação de Manuel Cordeiro nas guitarradas paraenses.

 

Complexo, instigante e noturno, “Fernando Catatau”, o disco, é uma obra digna de seu criador. Exige do ouvinte a atenção necessária para proporcionar a este uma viagem por becos escuros da alma torturada pelo amor, pelo tempo e pelas adaptações que a vida exige de todos. O álbum é verdadeiro e pungente, uma bela – ainda que tardia – estreia solo.

 

Ouça primeiro: “Raios Na Imensidão”, “Nada Acontece”, “Não Há Mais Nada A Dizer” e “Luz Do Fim De Tarde”