A live ecumênica da Larissa

 

 

Vocês conhecem a Larissa? De Honório Gurgel, Zona Norte do Rio, ali, logo depois de Rocha Miranda…Não conhecem? Ela, a exemplo de quase toda menina nascida no Rio, gosta de cantar, dançar, tem seus sonhos e faz de tudo pra correr atrás deles. Larissa faz o que pode pra seus afazeres caberem nas 24 horas do dia – curso de Inglês, academia, colégio, baile funk e igreja, além das festinhas, das baladas, das idas e vindas pelos subúrbios cariocas. Pois bem, essa descrição é da Anitta, a maior cantora brasileira em termos de popularidade nos tempos atuais, mas poderia ser da Larissa Macedo, seu nome de batismo. Sua live de ontem, dia 26 de abril, recordou uma faceta interessante de sua formação como cantora, os tempos de igreja.

 

Durante quase 100 minutos, Anitta cantou ao vivo várias canções gospel, que ela fez questão de frisar, logo no início do evento, que eram para pessoas de todas as fés. A gente sabe que essas fés se misturam nos quarteirões dos subúrbios, muitas vezes chegando a coexistir na mesma casa, na mesma família, até na mesma pessoa. Anitta/Larissa cantou enquanto vários instrumentistas surgiam num telão, acompanhando. A voz era totalmente “live”, mostrando que a menina canta realmente, algo que muitos ainda duvidam que ela faça. No cenário – econômico – umas almofadas da operadora de telefonia Claro e nas doações que ela recebia no whatsapp, além da própria operadora, outras empresas doavam 100 mil reais para ajudar os necessitados da pandemia do covid-19. Nos intervalos, mensagens de religiosos – evangélicos, judeus, católicos, das religiões de matriz africana – surgiam com falas sobre o valor da vida ser maior que tudo. Achei digno.

 

A live da Anitta é um caso muito fora da curva. Num momento em que os artistas mais populares se esbaldam na música mais fácil e identificada com os momentos mais apelativos de suas carreiras, Anitta vai na direção absolutamente contrária. Cantou música dedicada à sua avó, outras escolhidas por sua mãe, e outras mais próximas de seus tempos de frequentar a igreja. É aquela coisa: a menina cantava no altar mas gostava de mexer a bundinha, ir no baile, essas coisas. É tudo parte do identkit complexo que habita o brasileiro médio, no qual a coerência não é a maior característica e nem deveria ser. O ser humano é muito mais interessante do que essas coisas limitadoras, sendo assim, as origens da Anitta, que muitos criticam por se expor demais, por ser apelativa e tal, é de uma frequentadora de cultos e missas, cantando e tal. E isso ninguém tira dela.

 

Achei que sua live foi um raríssimo caso de sinceridade. Ela não tinha nada a ganhar fazendo um evento com repertório 100% acústico e 90% gospel, visto que ela inseriu uma ou outra canção mais calminha de seu repertório habitual. E sua preocupação com as doações parecia sincera, algo que faltou muito nessas lives. E a opção pelo teor gospel vai de encontro à necessidade de conforto espiritual no meio da pandemia, algo totalmente brasileiro. É mais ou menos como o Roberto Carlos reservar 30% de sua live às canções católicas. E tudo faz sentido.

 

Anitta não tem qualquer obrigação de fazer isso. Achei que ela correu riscos e ganhou pontos com seu público e com quem não acompanha sua carreira – meu caso. Provavelmente ela gravará mais lives e deverá inserir seu repertório habitual, o que é absolutamente normal. Por enquanto, Anitta saiu de cena e abriu um inesperado espaço para a Larissa vir cantar e mostrar como vão as coisas lá em Honório Gurgel.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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