A beleza abrasiva do Sunflower Bean
Sunflower Bean – Mortal Primetime
35′, 10 faixas
(Lucky Number)

Bons discos devem começar com sua melhor faixa. É uma crença não-escrita que mantenho como um pensamento recorrente. Se a primeira canção de um álbum não me pega de imediato, acende um alerta amarelo que só vai se apagar se uma sequência matadora de faixas vier logo em seguida. O quarto disco do trio de Nova York Sunflower Bean começa com “Champagne Taste”, uma cacetada daquelas de fazer a gente parar tudo o que está fazendo, aumentar o volume e repetir umas quatro, cinco vezes. Tudo nela é perfeito. O andamento dinâmico, o baixão elegante que permeia todos os cantos do arranjo, os riffs de guitarra que parecem saídos do primeiro álbum do Garbage e os vocais femininos inquietantes, sussurrantes, sexies e extremamente afinados. Tem de Stevie Nicks a Shirley Manson como influências óbvias e ressoa na mente. A letra, implícita, fala de lábios com gosto de champanhe, provocando o desejo alheio com conhecimento total disso. É rock e é moderno. Tem muito de anos 1990 por aqui, mas tem uma leveza powerpop em algum lugar do baú de inspirações. Bem-vindos ao ótimo quebra-cabeças que é o quarto álbum do Sunflower Bean, “Mortal Primetime”. E a primeira faixa é apenas o início de uma viagem total.
A banda é composta pela vocalista e baixista Julia Cumming, o guitarrista e vocalista Nick Kivlen e a baterista Olive Faber. Com uma carreira que ultrapassa uma década de atividade, o Sunflower Bean procurou fazer, nos três discos anteriores, uma revisão/apropriação de influências que oscilavam entre duas décadas – 1970 e 1990. Ora soavam mais aqui, ora mais acolá. Em “Mortal Primetime”, no entanto, eles deixaram a divisão temporal de lado e resolveram mergulhar em ambas as margens do rio, sem qualquer cerimônia. O que temos como resultado são esses híbridos sensacionais em que guitarras grunge podem se transformar em levadas glam, com vocais que podem estar na fase californiana do Fleetwood Mac ou na ascensão noventista de Shirley Manson. Para fazer isso, é preciso talento e os três são excelentes músicos. Olive Faber faz viradas e andamentos intrincados e/ou pesados. Kilven tem as manhas de timbres e levadas na guitarra, mas a grande atração aqui, sem dúvida é Julia Cumming. Com vocais que podem oscilar entre o sexy e o ingênuo/angelical/sofrido, ela também é ótima baixista. Suas linhas revestem os arranjos com competência suficiente para a gente prestar atenção só nelas.
Não é qualquer banda em ação que pode soar como T. Rex ou Heart e, logo em seguida, como Garbage, sem que isso pareça forçado ou sem sentido. As ótimas canções que viabilizam esse vai-e-vem temporal são a confirmação do talento do trio, que quase encerrou atividades por conta de mudanças de seus integrantes para costas diferentes dos Estados Unidos. Em vez do fim, parece que este novo álbum trouxe motivo forte para que todos reafirmassem essa vontade de fazer música sensacional, não importando o quão complexa pudesse soar. E, pelo contrário, as faixas presentes em “Mortal Primetime” são, além de tudo, extremamente pop e convidativas a vários climas. “Nothing Romantic”, a segunda canção do disco, é puro pop-rock setentista com uma profundidade guitarrística diferente mas com pistas deixadas pelo arranjo. Lembra as canções que o Heart fazia no início dos anos 1980. E que guitarrista é esse Nick Kilven, que soa como uma velha raposa felpuda das seis cordas, com um solo flamejante como já não se ouve há tempos. Quando você pensa que entendeu tudo, “Look What You’ve Done To Me” tem uma doçura melancólica que é puro soft rock setentista, com uma melodia que tem ares mccartneyanos. Na letra, o verso: “olhe o que você fez comigo”. Uma lindeza.
Desse mesmo setor mais pop baladeiro, tem uma pequena joia chamada “I Knew Love”, que começa com a espantosa linha: “I have walked through broken glass and houses I destroyed”, em meio a uma melodia linda de morrer, com um arranjo que é pura contemplação, com andamento em piano, mergulhando também no soft rock. O puro Fleetwood Mac reveste “Take Out Your Insides”, com aquela melancolia boa de sentir, com uma melodia leve como a brisa e vocais que mostram o quanto Julia é boa cantora. “Please Rewind” é puro violão dedilhado, com voz de Nick Kilven, mostrando que ele também domina esta função com desenvoltura. Tem leveza acústica, vocais entrelaçados, cordas, algo que tem aura beatle e lindeza de tarde cinzenta entre lágrimas e chuva, que molham o vidro da janela. “Shooting Star” é outra representante do cânon Fleetwoodiano, na qual, novamente, os vocais de Cumming estão acima da paisagem, indo na distância. E o fecho, com “Sunshine”, recupera o punch guitarreiro do início, envolve tudo numa ambiência shoegaze/dreampop e aponta para o horizonte.
“Mortal Primetime” é uma beleza praticamente perfeita. Tem melodia, ótimas canções, conceito, propriedade. É daqueles discos que pedem atenção total. Suas canções são pequenas joias sonoras. Não perca.
Ouça primeiro: tudo.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.