“Na Casa dos Sonhos” – quando o abrigo é pesadelo

 

 

 

O que seria uma casa perfeita para você? Um lugar com portas novas, pintadas em cores bonitas, janelas abertas para um dia fresco e ao mesmo tempo ensolarado, cheiro de café vindo da cozinha?

 

Você consegue imaginar o que seria capaz de destruir tamanha sensação de segurança? Um assalto, um incêndio, pais relapsos, um casamento violento?

 

A autora americana Carmem Maria Machado encontrou a casa dos sonhos na sedução, inteligência e paixão de sua namorada, que a acolheu em um cenário de amor e desejo e com a mesma intensidade o destruiu, aprisionando Carmem em armadilhas de terror psicológico e abuso, experiência que ele descreve em seu livro “Na casa dos sonhos”, editado pela Companhia das Letras

 

 

 

Ele é um livro de memórias que não segue a linearidade “começo-nos conhecemos, meio-ela mostrou ser quem realmente era, fim- livrei-me do abuso e renasci”. Como Carmem mesma definiu em uma entrevista, o sofrimento não é linear, a vida não acontece dentro das partes de um texto.

 

Ninguém acorda um dia e pensa “Ui, que bom, já não sofro mais!”

 

A estrutura de “Na casa dos Sonhos” é peculiar, com capítulos que têm títulos que lembram cliques rápidos de filmes, narrativa em primeira e terceira pessoa, alguns estudos de Carmem sobre cultura pop e o que ela define como “silêncio do arquivo”, ou o que não se encontra em registros históricos e culturais. No caso da sua obra, a violência entre parceiros homoafetivos.

 

Ela chama a uma discussão que cabe a todas e todos nós como sociedade: a violência doméstica no meio queer precisa ser debatida e não mais “invisibilizada”.

 

Em um dos capítulos, ela lista vários casos judiciais entre casais de mulheres que tiveram desfechos esdrúxulos por puro preconceito do magistrado, com muito cuidado entre as descrições, o que não impede de sentirmos uma revolta crescente e refletirmos sobre quantos de nossos amigas ou amigos queers passaram por alguma situação de abuso sem que nos déssemos conta, ou até mesmo nos suportaram encarando seus traumas sem a mesma atenção que daríamos a uma vítima heterossexual.

 

Carmem precisou, em suas palavras, se “retramautizar” para escrever “Na casa dos Sonhos”. Ou seja, como foi dito no começo do texto, ela não deu à sua experiência ares de renascimento, de uma fênix fortalecida. Tudo é muito frágil, humano, doloroso, e mostrar ao mundo de uma forma tão genial o que a machucou profundamente não impediu que tais feridas fossem reabertas.  Às vezes ela pensa que talvez fosse melhor não o ter escrito.

 

“Foi como expelir uma pedra no rim”. Acho que eu nunca ouvi um escritor descrever de uma maneira tão física o processo criativo de um livro.

 

E eu também nunca li nada como “Na Casa dos Sonhos”.

 

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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