Rodrigo Campos e seu samba existencialista
Rodrigo Campos – Pode Ser Outra Beleza
23′, 8 faixas
(YB)

Quando estávamos elaborando a lista de melhores discos nacionais do ano passado, nos demos conta que havíamos deixado passar dois álbuns: “Pagode Novo” e “Elefante”. Ambos são de autoria do paulistano Rodrigo Campos, sendo que o segundo, é dele em parceria com Romulo Froes. São dois trabalhos em que o samba é apresentado numa variante meio esquecida e ignorada hoje em dia – triste e existencial. Com canções envoltas em arranjos econômicos, sem uma catarse instrumental óbvia, mas construídos na tensão obtida a partir da escolha de instrumentação minimalista e uma abordagem que privilegia a força das palavras. O resultado: “Elefante” foi escolhido como o melhor álbum de 2023 e “Pagode Novo” entrou no Top 10. Agora, cerca de um ano depois, Rodrigo volta com mais um trabalho na mesma linha. “Pode Ser Outra Beleza” segue as mesmas informações dos anteriores, mas tem uma vida à parte. É rápido – 23 minutos de duração – e mostra o ser humano metropolitano em sua fraqueza e solidão totais. Mais ainda: o mostra como um ser absolutamente vulnerável a um cotidiano cinzento e opressor, mas que encontra em pequenos prazeres e momentos tudo o que pode haver de bom. Mesmo que nem seja tanto assim.
O samba de Rodrigo soa como uma cruza entre Paulinho da Viola e João Bosco, sem as tonalidades cariocas que as obras desses dois mestres ostentam. No lugar, Rodrigo imprime uma retidão paulistana, uma contemplação quase culpada em vista do tempo que sempre parece estar a ser perdido pelos habitantes da maior cidade do país. Esse compromisso com o imediato, típico da pós-modernidade, desorienta as pessoas e as coloca em pequenas rodinhas de gaiola de hamster, em que correm até se esfalfar e não chegam a lugar nenhum. Essa realidade dura e cinza é relatada com poesia à flor da pele por Rodrigo, de um jeito belíssimo e muito triste. É como se o escritor e pensador franco-argelino Albert Camus pairasse sobre a maneira de ver os dias, os contatos e colocá-los sob uma filtragem em que apenas o mais importante consegue atravessar. Só ouvindo para saber. Só lendo as letras para entender. O que sai dos altofalantes é um samba árido e lindo, algo que muitos sequer imaginam ser possível quando se referem ao estilo musical. Samba existencial? Pode – e deve – ser.
Rodrigo produziu as oito faixas do álbum e, ainda que, juntas, perfaçam um total de 23 minutos, a audição delas tem tanta carga lírica e detalhes, que parece que ouvimos muito mais canções. A voz de Rodrigo tem uma certa doçura que se contrasta com as letras e isso acentua a sensação de confusão e perplexidade diante do que é dito. Com durações orbitando entre três minutos e pouco e dois minutos e tanto, as faixas do álbum têm uma dinâmica que favorece o ouvinte. Os temas, aparentemente independentes entre si, vão convergindo para uma impressão mais detalhada de quem está cantando, como se vários assuntos distintos fossem abordados numa mesma conversa pela mesma pessoa. É difícil escolher uma preferida neste diadema. Os arranjos nivelam as canções e ressalta o melhor que elas têm a oferecer. “Pavio de Felicidade”, que inicia o percurso, dilacera o ouvinte logo de imediato, seja pela melodia lindíssima adornada ao violão, seja pela analogia entre a brevidade das coisas e o tempo que um pavio leva para ser queimado pelo fogo. No meio do percursos, Rodrigo clama a Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola, influências óbvias.
Aberta a porta, nos deparamos com o violão joãobosquiano da linda “Amar à Distância” e chegamos em “Seu Lugar”, que tem tons mais solares e fala sobre alguém que será transformado por ir até à Bahia, mas não ficamos certos se essa transformação será positiva ou não. Mas, diante de sua inevitabilidade, talvez só reste a percepção do que vem. “Chapéu Lilás” é outra canção com violão belíssimo, evocando a influência de João Bosco, não só no instrumento, mas no jeito de cantar e na própria letra – que, no caso, em seus melhores momentos, eram de Aldir Blanc. Lembra algo da produção de João no início dos anos 1980, com beleza e romantismo desesperados (“Você partiu, você partiu pra dentro de mim”). “Um Xanax” talvez seja a mais assombrosa composição do álbum, falando sobre o abismo constante entre a ansiedade, a possibilidade do seu controle com um comprimido e a consequente relação de dependência que surge dessa condição (“um Xanax, um Xanax no táxi”). “Cadê Meu Dinheiro” se vale de mais tons solares e arejados para falar da penúria material e emocional das pessoas (“como vou me sustentar se eu só sei batucar//Como vai ser a vida, quando vou ver o mar?”). “Musashi na Feira” é surrealista e usa a história do famoso mestre samurai japonês do século XVI para ilustrar os personagens do cotidiano, sejam reais ou não. O fecho com “Matéria do Sonho” encerra com solenidade a dicotomia do cotidiano e a necessidade de lidar com tempos em diferentes andamentos (“Você quis o céu e o mar//Não menos que o céu e o mar//Mas a imensidão não quer caber no tempo ou no jornal”).
“Pode Ser Outra Beleza” é desses discos que precisam ser ouvidos pelo maior número de pessoas. Oferece conhecimento precioso, lirismo incontido e um jeitão de lidar com a pós-modernidade de quem sabe as verdades mas precisa driblá-las em nome da sanidade e da persistência. Algumas vezes sem sucesso. Que lindeza. Parabéns, Rodrigo Campos.
Ouça primeiro: o disco todo.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.