A sutileza e a doçura de Clairo

 

 

 

 

Clairo – Charm
38′, 11 faixas
(Clairo Records)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Nós, que gostamos e pensamos sobre música, às vezes esquecemos de alguns detalhes importantes. Hoje, 2024, praticamente toda a produção pop de todos os tempos está ao alcance de um clique. Diversos serviços de streaming, acessos, sites, blogs, proporcionam facilidade nunca antes observada na pesquisa musical, na aquisição de influências, no tráfico de informações. Ainda que alguma pessoas obtusas teimem em sentir saudade de como era legal comprar vinis em 1980 ou adquirir CDs em 1995, a Internet escancarou o acesso a praticamente tudo o que já foi feito por bandas, artistas, cantores, compositores e isso está disponível para qualquer pessoa que tenha curiosidade. A cantora e compositora americana Clairo é uma delas. Nascida ne Georgia em 1998, a jovem Claire Cottrill já está no seu terceiro disco e forjou uma imagem de menina tímida, sensível e inteligente, com canções que privilegiam a observação quieta e calada da vida e das pessoas que estão à nossa volta. Sua sonoridade é o que se convencionou chamar de lo-fi, ou seja, um pop alternativo com arranjos de teclados, violões e guitarras, adornado com baterias eletrônicas e demais instrumentos que podem caber num laptop, tudo gravado no quarto, com carinho e despretensão. Claro, é um rótulo, já é possível pensar em lo-fi produzido em série e apenas parecendo espontâneo e amador, mas Clairo fez o caminho oposto: deixou o pop acabrunhado e apresenta uma versão mais expansiva e complexa do que vinha fazendo até então. Aqui está seu terceiro trabalho, o ótimo “Charm”.

 

Os trabalhos anteriores, “Immunity” (2019) e “Sling” (2021), já mostravam uma cantora singular dentro deste universo do pop lo-fi, mas a chegada de “Charm” mostra que os prognósticos estavam, digamos, imprecisos, justo porque Clairo resolveu sair desse espaço limitado esteticamente e abraçou sonoridades que poderiam pertencer facilmente ao pop soul setentista da melhor categoria. Para isso, a moça recrutou uma banda de ótimos músicos, capazes de reproduzir sonoridades e executar arranjos e convocou um produtor capazes de revestir de autenticidade esta guinada: Leon Michels, executivo e raposa de estúdio, responsável por trabalhos de gente como Lee Fields e Charles Bradley, sem falar em colaborações com Dan Auerbach. Além disso, Michels pilotou o estúdio para gente como Chicano Batman, Sharon Jones, Hanni El Khalib e Norah Jones (cuja fase mais pop da carreira lembra muito a sonoridade que Clairo obtém em “Charm”). Sendo assim, com uma olhadela na ficha técnica e nas habilidades dos envolvidos, fica mais fácil entender o milagre sonoro do qual as faixas de “Charm” parecem fazer parte.

 

Com Michels no comando, Clairo gravou seu disco em estúdios de Nova York e, logo no primeiro single lançado, a ótima “Sexy To Someone”, já deu o recado da mudança. Com um groove sensacional e cheia de detalhes jazzy pop, a canção já ultrapassou a marca de trinta milhões de execuções só no Spotify. Clairo pode ter mudado sua sonoridade, mas suas letras conservam as observações timidas e silenciosas, o que reveste “Sexy…” de uma aura pouco comum, de paquera e flerte de gente tímida em tempos maximizados por aplicativos como Tinder e similares. É deliciosamente contraditória e ousada e este contraste entre a expansão sonora e a emoção das letras é um dos grandes atrativos do álbum. Há outras lindezas, como, por exemplo, “Second Nature”, que tem sons de risinhos em meio a uma levada procedimental, pop, com progressão de teclados no arranjo que emoldura a voz doce, multiplicada sutilmente na produção, que vai sendo envolvida por uma melodia bela e bem pensada.

 

Em “Thank You”, Clairo parece uma daquelas cantoras da segunda metade dos anos 1970, produzidas em Los Angeles, com sonoridade que abraça o pop mais radiofônico, mas não entra muito fundo no mar. Novamente o arranjo é a grande estrela, emulando sonoridades AOR com delicadeza e sem invencionice. “Add Up My Love” também vai neste mesmo caminho, dessa vez com um pouco mais de ênfase no groove da bateria e de detalhes de guitarra, tudo em contraste com a voz frágil e vulnerável de Clairo. E em “Echo”, mais pro fim do álbum, a influência dos Beach Boys do fim dos anos 1970 assombra o arranjo e os vocais embarcam numa dinâmica de quase-sussurro, obtendo um efeito belíssimo e emocionante.

 

“Charm” é, perdoem o trocadilho, um charme. Mostra uma artista surpreendente, em evolução, ousando e atingindo novos patamares. Este disco é uma belezura e já está bem posicionado nas vindouras listas de melhores de 2024. Não perca.

 

 

Ouça primeiro: “Sexy To Someone”, “Second Nature”, “Thank You”, “Add Up My Love”, “Echo”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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