Você conhece o último popstar inglês?
Paul Heaton – The Mighty Several
45′, 12 faixas
(Universal)

Sempre que falo sobre Paul Heaton, lamento que ele seja conhecido por aqui apenas por ser o vocalista da “Melô do Papel”. E olha que até essa noção pra lá de superficial acerca do trabalho dele está sumindo com o passar do tempo. Sendo assim, até que algo mude, sempre que escrevermos algo sobre Heaton, teremos que fazer esta pequena introdução. Nos anos 1980, sua banda, Housemartins, fez sucesso na Inglaterra natal com dois ótimos discos – “London 0 x 4 Hull”, de 1986, e “The People Who Grinned Themselves To Death”, de 1988. Era uma banda que misturava o northern soul sessentista inglês com o rock alternativo smitheano, fundindo essa sonoridade com letras sobre desventuras amorosas e um ponto de vista crítico/de esquerda bem comum entre artistas ingleses daquele tempo. Cravaram um sucesso mais ou menos mundial: “Build”, a tal “Melô do Papel”. Com o fim do grupo, em 1989, Heaton montou The Beautiful South, iniciando uma carreira vitoriosa – na Inglaterra – que duraria até meados dos anos 2000. Com a banda implodindo por conta dos desgastes naturais do tempo, ele iniciou uma trajetória de álbuns solo que demorou a decolar. Chegou a cantar com a vocalista do Beautiful South, Jacqui Abott, lançando cinco discos entre 2014 e 2022, mas esta precisou deixar a dupla em segundo plano por conta de um filho autista. Heaton então respirou fundo e voltou à carga, solo, para este “The Mighty Several”. O resultado é, mais ou menos, como se o cineasta Ken Loach lançasse um álbum pop.
Se você não está familiarizado com a obra e a persona de Loach, sugiro dar uma googlada antes de prosseguir aqui. Porque, tanto o cineasta quanto o cantor/compositor pertencem à orgulhosa estirpe dos socialistas ingleses, algo que costumava ser bem mais comum do que podemos pensar. São sujeitos sensacionais, que valorizam o trabalho duro, e bota trabalho duro no lombo dos operários e trabalhadores que ergueram a Inglaterra ao longo do tempo. Heaton, por exemplo, é um cara extremamente vinculado a dois pilares da cultura de lá – o futebol e os pubs. Torcedor do pequeno, mas tradicional, Sheffield United, ele chegou a ter um pub no início dos anos 2000, mas não conseguiu dar conta da carreira e da gestão. Sua música ainda pega emprestados os tiques e taques do northern soul e mistura com ska, reggae, pop clássico setentista e um pouco do rock alternativo oitentista. Suas letras seguem aprofundando a contradição do homem médio diante do sistema, suas desventuras, suas opiniões e como ainda é possível pensar em amor, dedicação e retribuição. Não por acaso, Heaton é um dos únicos artistas ingleses do primeiro time que ainda briga para limitar preços de suas apresentações (não podem custar mais de 35 libras), faz shows gratuitos para sindicatos e organizações comunitárias. Nos tempos da covid, ele sustentou os jornalistas desempregados por conta da falência da Q Magazine e fez várias apresentações para os funcionários do NHS, o SUS inglês.
Este ano foi especialmente bacana para Heaton. Escalado para o Glastonbury, sua apresentação, que contou com participação do velho companheiro de Housemartins, Norman “Fatboy Slim” Cook, revisitou sucessos de toda sua trajetória e reafirmou a eficácia de sua música hoje. “The Mighty Several” é um disco produzido por Ian Brodie, do grupo Lightning Seeds e apresenta essa sonoridade pop clássica a que nos referimos acima – tem ecos de Van Morrison, de Madness, de grupos obscuros de northern soul e, acima de tudo, tem faixas com letras que colam imediatamente nessa gente de meia idade, que já viu dias mais entusiasmantes, mas que segue em frente e tenta se adaptar à rapidez vertiginosa do hoje, do já, do agora. Por isso, uma canção como “Fish’n’Chips Supper” é tão bacana e capaz de representar o álbum como um todo. Tem um refrão que quase chupa “Happy Together”, sucesso dos Turtles, mas sai pela tangente, mas pega emprestado o arranjo de pop multidisciplinar pós-Beatles, no qual a voz de Heaton – ainda ótima – se encaixa perfeitamente.
A presença de uma voz feminina é obrigatória nos álbuns do sujeito, sendo assim, a escocesa Rianne Downey assume a função com louros. Ela tem doçura suficiente para o contraponto, mas consegue timbre quase country em alguns momentos (como na ótima “Just Another Family”), quando é exigida, além de ter ótima presença de palco. Além dela, também está presente o músico Danny Muldoon, que divide vocais em “Pull Up A Seat”, canção totalmente tributária do Van Morrison mais pop. Muldoon também aparece na tradicional “Small Boats”, com andamento rápido, e clima irlandês lembrando bastante The Pogues. Ainda que não haja momento desperdiçado ao longo das doze faixas do álbum, dá pra dizer que “National Treasure”, a faixa de abertura, é um momento dourado suspenso no ar. Lembra bastante “Manchester”, faixa do último álbum do Beautiful South, e investe no andamento jazz pop tradicional para oferecer uma melodia lindona com ótima participação de Rianne. Em “Quicksand”, novamente com participação dela, Paul engata num ska que não deixa nada a dever aos discos do Madness nos anos 2000. Este clima de festa de pub vai até o último momento, quando tem final “Walk On, Slow Down”, que, mesmo usando timbres eletrônicos inesperados, mantém a coerência dentro do contexto.
Paul Heaton é tesouro nacional britânico. Não por acaso, levou o prêmio Ivor Novello nesta categoria, de “National Treasure”, pelo conjunto de sua obra. Conheça o que homem faz desde meados dos anos 1980 e identifique-se tanto com sua música, quanto com sua postura admirável, especialmente em dias tão cruéis como os atuais.
Ouça primeiro: “National Treasure”, “Quicksand”, “Fish’n’Chips Supper”, “Walk On, Slow Down”, “Just Another Family”

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.