Quando o Radiohead era uma banda de rock: The Bends faz 30 anos

 

 

 

Quer você goste ou não, a Radiohead, de Thom Yorke, Ed O’brien, Phil Selway e os irmãos Colin e Jon Greenwood, tem um lugar incontornável na história da música pop. Foram uma das primeiras bandas a ter um website. Nele, em 2007, tornaram disponível o download livre das faixas de In Rainbows, seu sétimo álbum. Com Kid A, o quarto álbum, criaram algo que não cabia mais no rock, onde eles surgiram. E desde seu precedente, OK Computer, se tornaram a trilha sonora para dilemas da vida contemporânea.

 

 

 

Como comentar The Bends, o segundo álbum, lançado em março de 1995, sem saber que tudo isso aconteceria? Há uma dica valiosa na declaração de Jon registrada em um texto de Simon Reynolds: Kid A simplesmente continuou de onde havia parado OK Computer. Então uma possibilidade é partir do antecessor de The Bends: Pablo Honey, a estreia da Radiohead em 1993.

 

Quando Pablo Honey foi gravado em 1992, a banda já existia há cerca de sete anos. Colegas de colégio nos arredores de Oxford, Inglaterra, os integrantes retomaram as atividades em 1991 após quatro deles terminarem cursos universitários. A exceção foi Jon, mais novo, que, recém integrado aos demais, largou a faculdade no primeiro ano. Afinal, haviam sido contratados pela EMI.

 

Oxford já dera ao mundo a Ride e dela sairia também a Supergrass. Se a primeira banda, de 1988, era uma representante do shoegaze, a segunda, de 1993, surfava na onda do britpop. On a Friday (nome original da Radiohead) não era uma coisa nem outra. Mas tinha muita guitarra (três!) e atraiu a atenção de várias gravadoras. A EMI sugeriu que mudassem o nome, o que aconteceu em 1992.

 

Ao contrário do que muita gente diz (inclusive a própria banda em algumas de suas declarações), Pablo Honey não é um álbum fraco. Sim, atira para muitos lados, tentando processar influências variadas: Joy Division, Magazine, The Smiths, The Fall, Elvis Costello, Joe Jackson, U2, R.E.M., Japan, Pixies… Mas o trabalho das guitarras se destacava e Thom Yorke era um cantor muito bom.

 

O álbum demorou para decolar e o relativo sucesso aconteceu antes nos Estados Unidos. Fazia sentido: o nome da Radiohead vinha de uma música de uma banda de Nova York, a Talking Heads; os produtores de Pablo Honey, Sean Slade e Paul Kolderie, eram de Boston.

 

O álbum tinha várias músicas notáveis, que ficaram ofuscadas pelo estouro de uma delas: “Creep”. O contraste entre uma parte tranquila e o refrão pesado faziam a conexão com o grunge. A letra confessional – ou assim parecia ser – e atormentada também fazia parte do espírito da época. Nos shows da turnê, 130 em 14 países diferentes, havia quem só estivesse lá para escutar “Creep” ou para ver mais uma banda grunge.

 

The Bends foi diretamente influenciado pela exaustão dessa turnê. O título do álbum faz referência ao distúrbio que mergulhadores sofrem quando voltam muito rápido à superfície – algo que banda estava experimentando por conta da fama, devida em grande parte a uma única música. Na capa do álbum, fotografado em um monitor, figura um manequim usado em exercícios de reavivamento. O quinteto precisava encontrar outras maneiras para respirar. E assim surgiu algo muito diferente de Pablo Honey.

 

 

Muitas rupturas e algumas continuidades

No início de 1994, após ensaios em um estúdio nos arredores de Oxford, o quinteto instalou-se no RAK Studios, em Londres. Estavam acompanhados por John Leckie, produtor veterano e polivalente. Ele havia sido assistente de Phil Spector e trabalhado com Pink Floyd, XTC, The Fall, PIL, Magazine e, mais recentemente, The Stone Roses. A previsão era que o novo álbum fosse lançado em outubro daquele ano. Mas não deu.

 

O clima ficou tenso com impasses criados por sugestões de vinham de todos para montar os arranjos das composições de Yorke. A EMI complicou mais as coisas querendo logo um hit single. Depois de dois meses, o vocalista foi convencido a trabalhar sozinho nas canções com seu violão, e isso destravou o processo.

 

Só que não havia mais tempo de terminar as gravações antes de uma pequena turnê. Em junho, a banda voltou ao estúdio, dessa vez no Manor, uma mansão situada perto de Oxford, onde a The Cure havia gravado Wish. A mixagem foi realizada em Abbey Road, mas depois 9 faixas foram enviadas para Slade e Kolderie (os produtores de Pablo Honey) para retoques. Em novembro, os trabalhos finalizaram.

 

Doze músicas foram escolhidas para preencher The Bends. Pelo menos quatro eram anteriores ao segundo semestre de 1993, quando várias foram compostas por Yorke no ônibus em que fizeram uma das turnês nos EUA, em meio a um sentimento de mal-estar. A primeira a ser divulgada foi “Iron Lung”, ainda em 1994. A comprovar que as coisas foram difíceis no estúdio, o take escolhido para esta faixa foi derivada de um show, com exceção da voz de Yorke, acrescentada posteriormente.

 

“Iron Lung” é o nome que se dá a pulmões artificiais usados em hospitais. Na interpretação de Mac Handall, “Creep”, o sucesso incômodo, era o pulmão artificial da Radiohead, banda desumanizada pelo showbiz. Ironicamente, seu arranjo remete ao de “Heart-Shaped Box”, da Nirvana. Mas em “Iron Lung” há elementos que apontavam em outras direções, prenunciando o que ouviríamos no álbum lançado alguns meses depois.

 

Apontar semelhanças com a Nirvana serve, na verdade, para destacar as diferenças da Radiohead, como as guitarras esganiçadas em “Iron Lung”. Nas músicas que acompanham o single de 1994 há sinais evidentes do amadurecimento do quinteto inglês. Por exemplo, “Permanent Daylight” poderia ser uma criação da Sonic Youth.

 

Em praticamente todas as faixas de The Bends, as construções recorrem a uma dinâmica de contrastes. Nas músicas mais agitadas, como “Iron Lung”, as guitarras explodem nos refrãos, marcando a diferença com a calmaria (às vezes tensa) que predomina no resto do tempo.

 

Outro exemplo é “Just”, faixa também destacada em formato single. Novamente, há um parentesco com outra música da Nirvana, “Smells Like Teen Spirit”. A explosão ocorre logo no início, introduzindo o contraste entre menos e mais barulho. Mas o cotejo mostra que o refrão tem ele mesmo uma progressão. Depois de dois minutos, a faixa segue por variações que fazem o hit da Nirvana parecer extremamente simples.

 

Essas variações apontam para um lado prog, art rock, grandioso – que, na Radiohead, tempera a economia pós-punk. Em comparação com Pablo Honey, The Bends utiliza muito mais os teclados (além de incorporar um trio de cordas em uma faixa). Mas a grandiosidade é criada mesmo pelas guitarras de Thom, Jon e Ed.

 

Tal grandiosidade aparece já na introdução da faixa título. Os riffs lembram um arranjo da Boston ou de outro epítome do hard rock, mas também remetem a “Ripcord”, faixa de Pablo Honey. “The Bends” prossegue em suas cinco seções, incluindo uma em que Yorke praticamente canta em forma de rap.

 

Ao passo que “Bones”, com seu baixo marcante, está do lado das mais agitadas, outras quatro faixas estão mais perto de serem baladas. Mesmo nestas, a dinâmica de contrastes se mantém, ainda que de forma atenuada. Na aconchegante “(Nice Dream)” – que retoma a levada de “Thinking About You”, incluída em Pablo Honey – há um trecho que faz pensar em um pesadelo. “Sulk” e “Black Star” desfilam grandiosidade em seus refrãos. “Bullet Proof… I Wish I Was” é conduzida no violão, com as guitarras produzindo ambient sounds aleatórios.

 

Até podemos considerar outras três faixas como baladas, mas em comparação com as anteriores, elas empregam construções diferentes. Além disso, ganharam destaque ao serem também divulgadas como singles e vídeos.

 

“High and Dry” é das músicas cuja composição é anterior à gravação de Pablo Honey (as outras são “The Bends”, “Nice Dream” e “Sulk”). No seu caso, com outro arranjo, fazia parte do repertório da banda com a qual Yorke tocou durante seu curso universitário. Os contrastes voltam a aparecer com força. E o solo de Jon faz toda a diferença. O registro incluído no álbum é de 1993 e contou com a ajuda do engenheiro de show da banda, Jim Warren.

 

“Fake Plastic Trees” foi inicialmente gravada apenas em voz e violão. A cada estrofe, novas camadas são acrescentadas, como ocorre em outras músicas do álbum – é aí que vemos a engenhosidade das guitarras de Ed e Jon. Nessa faixa, os acréscimos incluem um trio de cordas pelas mãos de músicos convidados e um Hammond pelos dedos do caçula da banda.

 

“Street Spirit (Fade Out)” é costurada pelas guitarras de Yorke e Ed, conjugando delicadeza e tensão. Na metade da música, os teclados de Jon se juntam para construir um outro tema, grandioso e atmosférico.

 

Além do trabalho das guitarras, outro elemento que se destaca em The Bends é a voz de Thom Yorke. Sua potência guarda lugar para agudos e falsetes impressionantes. Ela parece ter um dom especial para construir melodias.

 

E sobre o quê canta essa voz? O desalento e o mal-estar percorrem as letras em The Bends. Ao contrário do vocabulário confessional em Pablo Honey, aqui os sujeitos são mais difusos. É difícil vislumbrar enredos, com exceção de “Just” e “Black Star”, que tratam de relacionamentos corrompidos.

 

Outra história – aliás, mais tipicamente estadunidense – inspirou “Sulk”. Em 1987, na Inglaterra, um homem de 27 anos abriu fogo e matou dezesseis pessoas, incluindo ele mesmo. Mas nada na letra cita literalmente o episódio.

 

Vários trechos podem ser relacionados aos custos de se estar em uma banda sob holofotes, a começar com “Iron Lung”: “Eis aqui nossa nova música / Igual à anterior / Uma perda total de tempo”. Os versos de “Bullet Proof…” e “Bones” podem ser escutados na mesma direção.

 

Vemos ainda dimensões mais individuais se misturarem a cenários mais amplos e coletivos, algo que álbuns posteriores vão se dedicar a aprofundar. Novamente podemos citar “Iron Lung”: “Coçamos nossa sarna eterna / Uma cadela do século XX / E estamos agradecidos por nosso pulmão artificial”. No mesmo registro está “Fake Plastic Trees”, com seu desfile de coisas e pessoas falsas.

 

Em meio à desesperança, contudo, notamos algum anseio de conexão. Um exemplo está em “The Bends”: “Eu quero ser parte da raça humana”. Outro, no verso final de “Street Spirit”, que contrasta com imagens de desaparecimento: “Mergulhe sua alma no amor”.

 

De todo modo, por mais cruéis que sejam as mensagens em The Bends, há uma disjunção entre esses sentimentos e a energia da música. Não apenas no sentido de sua potência ou de seu peso, mas também por conta dos tons que a sonoridade percorre, perfeita para públicos em arenas.

 

Um exemplo final está em “Planet Telex”, a faixa de abertura do álbum. Na letra, algo insistente e irreprimível leva ao refrão: “Tudo está quebrado / Todos estão quebrados”. Mas a sonoridade nunca desaba, em um caso singular em que a dinâmica de contrastes não ocorre. O uso do piano com muitos efeitos, a levada de bateria sampleada de outra música da banda (“Killer Cars”, que acompanha dois singles) e a quase ausência de melodia apontam para características que vão dominar fases futuras da Radiohead.

 

Nos palcos, “Planet Telex” não se distanciava de outras músicas fortes do álbum. A Radiohead aparecia como uma banda de guitarras, a agitação de Thom, Ed (que atuava também em backing vocals) e Jon fazendo contraponto com a contenção de Phil e Colin. Em dois períodos da turnê, Thom e Jon se apresentaram sozinhos com violões.

 

Os shows seguiram entre altos e baixos. A exaustão fez Yorke desmaiar na Alemanha. Entre os altos esteve o encontro com a R.E.M., algo que foi além da realização de um sonho. Stipe e seus colegas mostraram para a Radiohead que era possível administrar as tensões da fama.

 

The Bends teve grande aclamação crítica e suas vendas não decepcionaram. Elas foram ajudadas pelos vídeos que acompanham os singles. Meus destaques vão para “Fake Plastic Trees”, com seus personagens excêntricos perdidos em corredores de um supermercado esquisito, e “Street Spirit”, valorizado pelos efeitos especiais da filmagem de Jonathan Glazer.

 

Entre fãs, há que prefira The Bends a todo o resto da discografia do quinteto. No Brit Awards de 1996, a Radiohead estava indicada para melhor banda, melhor álbum e melhor vídeo, mas todos esses prêmios foram amealhados pela Oasis, então no auge de sua popularidade.

 

Mas o futuro deu mais lugar para a banda de Yorke. Um sinal dele aparece na participação de Nigel Godrich na produção de uma das faixas de The Bends, “Black Star”. Godrich acompanharia a Radiohead na sua excursão para além do rock, desde OK Computer, o álbum que, nas palavras do crítico John Robinson, ao mesmo tempo inventa o Coldplay e o torna obsoleto.

 

Nessa excursão, nota o já citado texto de Simon Reynolds, algo fundamental foi a desconstrução de dois traços marcantes na trajetória inicial da banda: a base melódica que contava com a voz de Yorke e o som das guitarras. Tal desconstrução culmina em Kid A e Amnesiac.

 

Já em The Bends, temos uma banda no seu momento mais rock, com as soluções encontradas para sair do mal-estar criado com “Creep” (que não deixou de frequentar os shows). Tanto esse paradeiro quanto o fato de não terem se acomodado a ele são provas do valor da Radiohead.

 

A biografia da banda, no entanto, não pode ser contada como uma linha reta pontilhada por rupturas. Há neste texto vários exemplos que apontam para outras possibilidades. Um último: o single final do álbum, dedicado a “Street Spirit”, está acompanhado por “Talk Show Host”, música que aponta para o que viria a seguir, mas que também retoma os acordes de “Blow Out”, faixa de Pablo Honey.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *