Ouvimos “MAYHEM” e não somos “little monsters”

 

 

 

 

Lady Gaga – MAYHEM
53′, 14 faixas
(Interscope)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Uma das qualidades do jornalista é a desconfiança. Deve ser usada com parcimônia, sob o risco dele se tornar isolado ou ultrapassado pela rapidez do tempo. Confesso que sempre desconfiei de Lady Gaga como uma megaestrela pop mundial. E a culpa é toda minha, algo que pude constatar depois da impressionante apresentação dela na Praia de Copacabana, diante de mais de dois milhões de pessoas. Neste show foi possível ver sua obsessão artística, sua extrema competência no ofício – seja musical, seja no campo do próprio entretenimento – mas, além disso tudo, foi possível notar como esta mulher consegue se comunicar tão diretamente com seu público. Certamente, há muitas questões em sua arte que extrapolam a visão meramente estética e atingem as pessoas em suas vidas de uma forma inegável. A ideia desse texto não é examinar essas sutilezas pessoais, até, porque, repito – não sou um fã da cantora e talvez não tenha o lugar de fala necessário para tal. O objetivo aqui é analisar a belezura que é “MAYHEM”, seu oitavo álbum, que já vem sendo antecipado e ouvido aos poucos desde o segundo semestre do ano passado. E, novamente sobre o show, confesso que as canções que mais me interessaram são integrantes deste trabalho. Sendo assim, deixando a desconfiança de lado vamos lá.

 

Uma olhada atenta a “MAYHEM” vai mostra vários aspectos interessantes. Ele é um trabalho conceitual, como praticamente todos que a cantora lança desde “The Fame”, de 2008. A ideia aqui é falar sobre lutas pessoais, aceitação, entendimento e superação dessas questões. O tema é recorrente na obra de Gaga, sempre abordado de forma pessoal, com ela se colocando como uma vítima dessas circunstâncias. Com essa ideia inicial, ela compôs as canções do álbum com a ajuda de Andrew Watt, produtor que assinou outros trabalhos seus e também pilotou estúdios para Rolling Stones, Miley Cyrus, Ozzy Osborne, Iggy Pop, Pearl Jam, entre outros. Ou seja, Watt, além de produzir e compor, também tocou vários instrumentos e emprestou seu olhar (e ouvidos) para a própria concepção da coisa toda. E, além dele, também estão na produção Cirkut e Gesaffelstein, que ajudam a pincelar as tinturas eletrônicas e dançantes que estão em todos os cantos de “MAYHEM”. Três das canções do disco estão circulando desde agosto do ano passado. A primeira, que entrou no tracklist apenas na reta final, é o belo single “Die With A Smile”, dueto de Gaga com Bruno Mars, que venceu o Grammy de Melhor Performance de Dupla em 2025, é uma balada soul pop com o carimbo da Motown daquele momento e parece ter sido composta de acordo com as regras douradas do almanaque.

 

“Disease” foi lançada em outubro de 2024 e já ultrapassou os 216 milhões de audições apenas no Spotify. É um batidão eletropop com letra coescrita pelo noivo de Gaga, Michael Polansky (que coassinou várias outras faixas do disco) e exorciza um amor que chegou ao fim e que precisa ser encerrado devidamente. E o terceiro single é outra faixa feita de acordo com o manual dourado do pop eletrônico atual, “Abracadabra”, que se tornou em enorme sucesso, ultrapassando a bolha de fãs, com quase 340 milhões de execuções do Spotify. Detalhe: há um citação bacana a “Spellbound”, faixa de Siouxie And The Banshees, devidamente creditada e assumida como influência. Aliás, o pop dos anos 1980, este aparentemente inesgotável manancial de inspiração, é o grande arquivo no qual Gaga e Watt cavaram a maior parte das referências de “MAYHEM”. Aliás, essa é outra característica muito bacana de Gaga – não há nada de novo ou inédito no que ela faz, mas as boas sacadas fazem com que a gente nem se importe com este dado. E aqui há convivência pacífica de Pet Shop Boys, Prince, David Bowie, eletropop alternativo dos anos 1990 e um monte de outras coisas.

 

Outras quatro canções também respondem pelos melhores momentos de “MAYHEM”. “Killah” é uma porrada que mistura influências fortíssimas de Prince fase “Sign O’Times” com toques industriais noventistas discretos, mostrando que Gaga e Watt sabem e entendem o que é um bom groove funk e como ele deve ser. Logo após, “Zombieboy”, minha preferida pessoal do álbum, é quase uma faixa nu-disco, com referências explícitas de Chic e mesmo da Madonna inicial, lá por “Holiday” ou “Everybody”. Composta em homenagem ao modelo Rick Genest, que usava esta alcunha e participou do clipe de “Born This Way” em 2011. E ainda tem a ótima “How Bad Do U Want Me”, que tem jeitinho de canção rapidinha da Whitney Houston oitentista, com pitadas de sintetizadores e uma bela dinâmica no arranjo. Fechando esse “quadrado mágico”, temos “Don’t Call Tonight”, que mergulha com força no pop funk oitentista e mesmo na dinâmica de gravações como “All That She Wants” ou “The Sign”, do Ace Of Base.

 

“MAYHEM” é um belo disco de pop moderno. Tem extremo bom gosto, cuidados visíveis – e audíveis – na produção e apropriação de estilos, tudo feito com a competência quase obsessiva que Gaga tem. Independente de sua mitologia, fãs, feitos extra-música e bem distante do marasmo atual, ela tem, de fato, muito a mostrar. Ouça.

 

Ouça primeiro: “Zombieboy”, “Killah”, “How Bad Do U Want Me”, “Die With A Smile”, “Don’t Call Tonight”, “Disease”, “Abracadabra”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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