O lado mais leve e pop de John Cale

 

 

 

 

John Cale – POPtical Illusion
64′, 13 faixas
(Domino)

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

Apenas para relembrar: John Cale foi a mente criativa e avant-garde do Velvet Underground. Enquanto Lou Reed escrevia sua poesia urbana, pervertida e perturbada – tudo isso no melhor sentido possível -, Cale era o sujeito que pensava nos arranjos e revestimentos sonoros que aproximavam e revestiam o rock’n’roll essencial de Reed com uma roupagem erudita e moderníssima. O diálogo entre eles nem sempre era fácil, a ponto de Cale ser demitido da banda após divergências estéticas. Ou seja, Reed, ele, por si só, um cara à frente de seu tempo, achou que John estava realmente viajando demais. Isso não significa que Cale e Reed se tornaram inimigos, pelo contrário. A colaboração deles em “Songs For Drella”, álbum de 1992 no qual homenageiam Andy Warhol, é tão boa quanto os melhores momentos do Velvet, ainda que seja bem diferente e muito mais triste. O fato é que John Cale seguiu em frente, tornou-se um artista ainda mais respeitado fora da banda, do mesmo time de gente como Brian Eno, David Bowie e demais pensadores/estetas de uma vanguarda rock que segue dando frutos. O mais recente é esse simpático “POPtical Illusion”, talvez um dos álbuns mais acessíveis que Cale já lançou.

 

As treze faixas deste novo trabalho vêm do mesmo nascedouro das que integraram o álbum anterior, “Mercy”, lançado há cerca de um ano. A diferença está na tonalidade mais alegre que essa fornada ostenta. O fato é que Cale teve, assim como muitos artistas, um surto criativo na pandemia de covid-19, tanto que ele registrou cerca de oitenta canções apenas no período entre 2021 e 2022. E, além da produtividade inesperada, o velho galês se viu com um renovado senso pop, no qual incluiu apreço por batidas hip hop, sonoridades eletrônicas atuais e tudo mais que está em voga no universo pop. Isso não significa que Cale usou todos os expedientes possíveis na tecnologia musical atual, mas, como vanguardista que sempre foi, sua abordagem desse idioma mais acessível acaba gerando momentos interessantes e até desconcertantes, tamanha a facilidade com que ele adentra o recinto da acessibilidade sem abrir mão de seu pedigree contestador. Responsável pela totalidade das faixas, das sonoridades e letras, Cale acaba criando espécimes adoráveis e surpreendentes ao longo da pouco mais de uma hora de duração.

 

Além das canções e do próprio álbum, Cale investiu em clipes extremamente legais, que foram feitos em parceria com a diretora americana Pepi Ginsberg, verdadeiras joias, caso de “How We See The Light”, “Pretty People” e “Shark-Shark”. Todos expoem o quão aguçado e relevante o sujeito ainda é, do alto de seus 82 anos muito bem vividos e experimentados. Sendo assim, “POPtical Illusion” é este álbum que dialoga com canções que se apropriam de elementos do pop mais recente, de influência new wave, funk e psicodélica e mistura tudo a partir do ponto de vista de um sujeito como Cale, vivendo uma fase exuberante. O resultado parece com momentos mais leves do Bowie noventista, ainda que seja diferente nas sonoridades, uma vez que Cale se apropriou de sintetizadores e batidas para criar as molduras sonoras das faixas. A própria “Shark-Shark” é um momento emblemático, que consegue ser experimental e totalmente pop, brincando com sons, ruídos e, caso seja ouvida a partir do clipe, propõe um mergulho nonsense que ainda é relevante e adoravelmente importante.

 

É muito legal ouvir uma canção como a engajada “Company Commander” e descobrir que um senhor de 82 anos está por trás dela. Por outro lado, dadas as circunstâncias do mundo atual, faz todo o sentido que uma pessoa dessa idade tenha repertório e experiências para trocar neste nível. Ou em “Funkball the Brewster”, que diminui o ritmo e investe num terreno mais dramático, assim como “I’m Angry”, que tem efeitos de teclado que remontam ao pós-punk inglês dos anos 1980 ou a uma versão dele existente apenas num universo em que Cale a domina e se expressa através dela. Mas o meu momento preferido por aqui é a perfeita “Davies And Wales”, na qual, em meio a uma levada radiofônica que poderia ser de algum popstar inglês dos anos 1980, Cale tece comentários sobre passado e presente, reconhecendo eventuais erros e pondo a culpa na falta de noção que nos caracteriza quando somos mais jovens. O verso “Avoid all the mistakes we made when we were younger//We don’t care who we hurt on the way up” consegue encapsular esse momento, dizendo, mais ou menos: evite pensar no que você fez de errado quando era mais jovem, afinal de contas, a gente não se importava em ferir as pessoas naqueles tempos”. Rapaz. Pense cantar isso saltitando em meio a uma levada sonora que parece Hall And Oates. É isso.

 

John Cale acessível para a garotada é coisa rara de ver e ouvir. Não perca a oportunidade de mergulhar nessas águas diferentes e ainda profundas da mente de um dos grandes nomes que o rock produziu e que parece facinho, facinho, como aquele vizinho que você encontra no elevador. Não perca.

 

 

Ouça primeiro: “Davies And Wales”, “Shark Shark”, “I’m Angry”, “Company Commander”, “How We See The Light”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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