“O Eternauta” é absolutamente imperdível
Héctor Germán Osterheld criou “O Eternauta” em 1957 no calor da ditadura militar que tomara conta do país dois anos antes. Entre vários episódios brutais, generais e comandantes das forças armadas argentinas ordenaram o bombardeiro aéreo da Casa Rosada visando assassinar o presidente Juan Domingo Perón, algo inédito na história do país. Osterheld publicou a história semanalmente numa revista, a Hora Cero, a princípio, com desenho de Francisco Solano Lopez. Dez anos depois, em 1969, o personagem voltou, dessa vez, desenhado por Alberto Breccia. Finalmente, a partir de 1976, em pleno recrudescimento da ditadura militar, foi lançada uma sequência, novamente com Solano Lopez. Cerca de um ano depois, Osterheld foi sequestrado por forças militares e desapareceu, sendo dado como morto anos depois. Além dele, suas quatro filhas, duas delas grávidas, e um genro tiveram o mesmo destino. E por quê? Porque “O Eternauta” é uma das mais interessantes críticas políticas já publicadas. Sutil a princípio e quase explícita ao decorrer, a trama acaba de ser adaptada pela Netflix e, a julgar por sua primeira temporada, o êxito é total.
A história é engenhosa e interessantíssima, ambientada nos anos 1950 e traz um viajante do tempo, Juan Salvo, que encontra o alter-ego do escritor e conta uma série de eventos ocorridos numa Buenos Aires devastada por uma misteriosa neve tóxica, que mata ao simples contato. Na versão da Netflix, a ação se passa nos tempos atuais e tem adaptações que não interferem na narrativa e, pelo contrário, algumas delas dão mais profundidade ao personagem de Salvo, vivido por Ricardo Darín. Aqui, ele é um veterano da Guerra das Malvinas, atormentado por visões do passado e do futuro, não tendo noção exata do que vê e sente, mas sua presença é decisiva na organização e enfrentamento da situação. Ao seu lado, os amigos Tano, Lucas e Ruso, além de Ana (esposa de Tano) e uma entregadora de aplicativo de bebidas (Inga) e um amigo do quarteto, Omar, estão na primeira leva de pessoas com quem travamos contato na série e sua atividade diante dos problemas respeita um dos conceitos criados por Osterheld nos quadrinhos, a do “herói coletivo”, no qual as vitórias e acertos só acontecem se houver cooperação entre as pessoas. É algo que se repetirá em vários momentos, com as pessoas procurando se ajudar para vencerem, juntas, os obstáculos que vão surgindo.
Aliás, talvez isso seja um spoiler, mesmo que a informação esteja disponível na Internet e seja conhecida dos fãs dos quadrinhos: a tal neve tóxica é apenas uma etapa de uma invasão alienígena em curso. Aos poucos a história vai levando o espectador a ter contato com estes seres e com o que eles podem fazer. As analogias de crítica política originais foram mantidas pela versão da Netflix, dirigida por Bruno Stagnari, que também escreveu os roteiros, ao lado de Ariel Staltari (que vive Omar na série). A natureza dos invasores e dos seres que vão surgindo, mostra claramente uma ação coordenada feita por uma mente oculta e maligna, que manipula e ilude (ou amedronta) os que a servem. O pânico causado pelo mistério e pela forma com que a chamada resistência vai tomando contato com o que está acontecendo sugere dissimulação, desprezo absoluto pela vida e desejo de cooptação/destruição de qualquer opção que seja possível.
A ideia da série é contar toda a história criada por Osterheld. O fim da primeira temporada mostra que ainda falta bastante informação para que seja possível entender completamente o que está acontecendo. A direção de Stagnari é excelente, bem como a edição de som e de imagens. Os efeitos especiais também são ótimos, mostrando uma impressionante Buenos Aires sob neve, cheia de carros parados no trânsito com corpos dentro. À medida que o mistério vai avançando, a paisagem se torna mais e mais assustadora, certamente se constituindo num fator extra de medo e mistério. O elenco é excelente. Darin é garantia de uma atuação boa e dedicada e ele dá ao seu Juan Salvo um ar de tristeza e perplexidade controladas, que se converte em eficiência e destemor quando necessário. Cesar Troncoso, que vive Tano, um engenheiro elétrico acumulador e fã de velharias, é, a meu ver, o grande nome desse elenco, mostrando um personagem que vai evoluindo junto com a trama e se moldando a partir dos perrengues que vão surgindo. Os atores restantes são ótimos e nota-se a dedicação com que abraçaram a história, que é um clássico argentino, já tendo sido adaptada para teatro, rádio, mencionada em filmes e livros.
Ao fim da primeira temporada – que eu vi em dois dias – o gosto de “quero mais” e a fascinação pela história são inevitáveis. Dá pra dizer que esta versão televisiva tem tudo para se tornar um marco do audiovisual latino-americano. Você não pode perder.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.