O admirável Djonga e seu disco novo

 

 

 

 

Djonga – Quanto Mais Eu Como, Mais Fome Eu Sinto
43′, 12 faixas
(A Quadrilha)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Se no Brasil atual temos uma série de artistas de qualidade questionável, com discursos conservadores/religiosos que excluem mais do que incluem, temos, do outro lado, artistas como Djonga. A existência de um cara como ele é fruto direto dos tempos estranhos que vivemos. Mineiro, esclarecido, consciente, pai de dois filhos, completando trinta e um anos em julho deste ano, Gustavo Pereira Marques, o próprio Djonga, é, provavelmente, o melhor rapper em atividade no país. Com oito anos de carreira e oito álbuns lançados, ele não economiza no discurso anti-racismo, anti-fascismo, procurando valorizar os caminhos – certos e errados – que trilhou para chegar até aqui. Sua verve é enfurecida contra os problemas de um país conservador, religioso e preconceituoso como o Brasil mas também reflete com impressionante profundidade os problemas existenciais das pessoas que vivem a vida duríssima das periferias e favelas das grandes cidades. Essa gente que também tem questões psicológicas, vontades, desejos, contradições e que, aos olhos dos privilegiados, não passa de estatística ou de meros corpos simplificados. Em “Quanto Mais Eu Como, Mais Fome Eu Sinto”, Djonga não perdoa essa gente preconceituosa e examina sua própria condição de artista famoso e rico. “O que fazer se, depois que as riquezas materiais são alcançadas, eu ainda sinto falta de várias coisas?” Ou seja, há muito mais para desejar do que fama, dinheiro, carrão, roupas caras, certo? Certo.

 

É disso que este álbum trata, das necessidades que vão além da primeira linha que a maioria lê. Além da riqueza financeira, do poder, da influência e da facilidade de se dar bem em relacionamentos superficiais, o que mais as pessoas querem? No caso de Djonga, ele quer autoconhecimento, justiça, honestidade, amor verdadeiro, paz e um monte de outras coisas que não são palpáveis, mas das quais também sentimos falta. A diferença talvez esteja no escopo dessas outras necessidades, que não se aplicam, necessariamente, ao indivíduo, mas que se espraiam pela sociedade, pelas pessoas amadas, pelo país ou mesmo pelo mundo. Pressupõe desprendimento e, em muitos casos, entram em choque com as primeiras necessidades do parágrafo, aquelas palpáveis. Bem, contradição é algo comum na obra e na vida de Djonga, que chegou a fazer sete períodos de uma faculdade de História, se viu tentado várias vezes a cruzar a linha que separa o “bem” do “mal” e, entre outras coisas, precisou abrir mão de muita coisa para compensar sua condição de negro periférico em um país como o nosso. Em muitos momentos perdeu a cabeça, brigou, errou, mas, quem nunca? Como diria a letra e “Clube da Esquina 2”, “de tudo se faz canção”.

 

A citação do “Clube” não é casual. Este novo trabalho de Djonga traz a participação mais que ilustre de Milton Nascimento. O bom hip hop nacional sempre cuida de intrincar-se com a MPB mais clássicas e, como dois artistas que têm o referencial mineiro em seu DNA musical, Milton e Djonga fazem um dueto de contrastes e espírito em “Demoro a Dormir”, na qual Bituca entra como se fosse uma voz desencarnada que paira sobre a questão existencial-cotidiana da qual a canção trata. Além de Milton, Djonga traz Samuel Rosa, que participa de “Te Espero Lá”, uma faixa mais leve e romântica, com o refrão “Menina, me diz seu nome, vamos atrás do novo mundo, onde a gente possa sonhar”, mostrando que é perseverar é necessário dentro desse contexto de provações e dificuldades. Dora Morelenbaum também surge no álbum, em “Ainda”, com a bela frase “Ainda que pouco fosse tudo pra nós, a gente teria a gente”, novamente sobre a necessidade de ceder um pouco ao coração, ouvi-lo e, a partir daí, entender onde é possível ceder à sensibilidade e à doçura num mundo tão amargo.

 

Djonga também promove outra participação em seu trabalho ao samplear “O Último Romântico, sucesso dos Los Hermanos, em “Melhor Que Ontem”, usando inteligentemente a progressão melódica da canção. Mas o filé deste trabalho do rapper mineiro está em três faixas matadoras: “Real Demais”, que tem um batidão sombrio e versos como “Eu também vendi nessas esquinas, também sonhei ser o rei da bola, também quis ter menos melanina e jamais ter frequentado a escola”, que espocam no ouvido. Em seguida “QQ Cê Quer Aqui?” é inventário de questionamentos, de idas e vindas nas questões que dizem respeito ao amor não correspondido e o que fazer a partir do momento que se constata. E “João e Maria”, que incorpora um pouco de melodia e backing vocals sobre como manter-se firme e atento ao que a sociedade faz com você. Rapaz do Dread e Coyote Beatz, produtores e parceiros de vida de Djonga desde o início, conferem a belezura das batidas e o excelente som que este álbum tem, coisa rara na produção nacional.

 

Djonga é de verdade. Humano, falível, procurando fazer o que sabe e, a partir daí, fornecer caminhos para quem o ouve. Este disco o coloca definitivamente no primeiro time da música feita no Brasil, de qualquer estilo.

 

Ouça primeiro: “Real Demais”, “João e Maria”, “QQ Cê Quer Aqui”, “Demoro A Dormir”, “Te Espero Lá”, “Ainda”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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