Lemonheads em 1996 – O fim de um ciclo
As décadas têm várias décadas em seus dez anos. A frase – não creditada – é típica de quem estuda História e percebe que os períodos de tempo, fracionados de acordo com calendários, estão bem longe da precisão. Explico e aponto um exemplo. A década de 1990 tem, dentro de seus dez anos cronológicos, vários períodos que parecem maiores do que realmente foram. E completamente diferentes entre si. Não dá pra dizer que tudo que aconteceu em 1992/93 tem muita semelhança com o que houve em 1996/97. Foi quando a nossa percepção de tempo começou a acelerar por conta das mudanças tecnológicas e dos rumos políticos e econômicos que foram adotados então. E, nas artes, na cultura, esse impacto foi sentido e gerou multiplicidades que só foram percebidas com o passar do tempo. O rock alternativo americano, por exemplo. Era inundado de bandas promissoras, enguitarradas e afiadas, Nirvana à frente, entre 1990 e 1993/4. Após a morte de Kurt Cobain, do jeito e pelo motivo que ocorreu, o jogo mudou, juntamente com a ascensão do britpop, do hip hop e o surgimento do pós-grunge. De uma maneira geral, este rock alternativo de guitarras, que continha bandas múltiplas, foi perdendo a força e gradativamente se aninhando novamente no underground, num processo lento. Uma das bandas mais promissoras desde a virada dos anos 1980/90, o Lemonheads havia se tornado uma estrela mundial. E estava prestes a fazer algo parecido com um testamento e desaparecer. Pelo menos, pelos próximos dez anos. Vejamos.
Escrevo esse texto por dois motivos. O lançamento em vinil da edição de luxo de “Car Button Cloth”, sétimo álbum do Lemonheads, originalmente de 1996. E pelo casamento de Evan Dando, o cérebro por trás da banda, com a brasileira Antônia Teixeira, no finzinho de dezembro do ano passado. Dando agora é um feliz morador da Serra da Cantareira, em São Paulo e promete o lançamento de um novo álbum dos Lemonheads para outubro deste ano e parece bem, saudável e feliz da vida. Quem conhece a banda, sabe o quanto o relacionamento dele com as drogas determinou escolhas estéticas e movimentos na carreira do grupo. E foi justamente com “Car Button Cloth” que sua fase mais aguda de consumo de drogas se fez presente. Dizem que a proximidade com os irmãos Gallagher – também em seu momento mais junkie – ajudou a, como dizem os antigos, colocar fogo na fogueira do vício de Dando. Não deixa de ser triste, visto que o sujeito se provara um dos mais talentosos compositores deste rock alternativo de guitarras que mencionamos. Talvez mais que todos os outros, Dando era capaz de enfiar ganchos melódicos irresistíveis em tudo o que compunha, tendo lançado dois álbuns de muito sucesso num espaço pouco maior de um anos: “It’s a Shame About Ray” (1992) e “Come On Feel The Lemonheads” (1993).
Estes dois discos colocaram o Lemonheads nos píncaros do sucesso, sendo uma das raras bandas fora do grunge americano a estampar capas de revistas, publicações especializadas e posters das meninas adolescentes, tudo ao mesmo tempo. Mais que um rostinho bonito no meio das camisas de xadrez, Evan Dando parecia sensível, gente boa e … romântico. Só que, dois, três anos depois disso, lá por 1996, Dando era um ávido consumidor de crack e outras substâncias ainda mais barra pesada. Foi com este cenário, esta tabelinha junkie com os Gallagher e mais um monte de questões pessoais, que ele entrou em estúdio para gravar seu último disco para a Warner. Com a ajuda do camarada Murph, baterista do conterrâneo Dinossaur Jr e do produtor Bryce Goggin, que tocaram todos os instrumentos junto com ele, Dando fez um álbum próximo da perfeição. Se ele optasse por manter o clima das cinco primeiras faixas, seria um triunfo pop ainda maior que “It’s a Shame…” de quatro anos antes. Mas, a partir da sexta faixa, “Car Button Cloth” é invadido por uma aura dark, confusa, autobiográfica e esquisita. Mas, ainda assim, genial.
As tais cinco músicas iniciais são, de fato, perfeitinhas. “It’s All True”, “If I Could Talk I’d Tell You” (parceria com Eugene Kelly),”Break Me” (a preferida deste que voz escreve), “Hospital” e “The Outdoor Type” (cover do grupo australiano Smudge) compõem o melhor de Evan Dando como compositor, intérprete, cantor e bom de cover. Elas sintetizam o tal “bubblegrunge”, ótimo termo, cunhado pelo próprio Dando para definir sua sonoridade, na verdade, um híbrido de pop-punk, rock alternativo e até powerpop dourado, tudo ao mesmo tempo. A fluência e a fofura das melodias e letras está no mesmo nível do melhor de “It’s a Shame About Ray”. Quando a gente pensava que iria se esbaldar numa piscina de bolotas musicais coloridas, vem “Losing Your Mind” e tudo muda. Tudo mesmo.
A partir daí, o álbum mergulha em um território sombrio. A canção, uma espécie de blues alternativo, traz uma sonoridade que poderia ser equivalente ao que o Nirvana supostamente faria após “In Utero”. A letra expressa um sentimento de perda e desolação, culminando em um Dando exausto, marcando o início da jornada de “Car Button Cloth” rumo à loucura. A faixa punk “Something’s Missing” revela letras dilacerantes sobre a falta de propósito e o descontentamento. “Knoxville Girl”, um cover de uma canção country dos Louvin Brothers, ganha uma interpretação bizarra com vocais apáticos e explosões de guitarra. Ainda mais estranha é “6ix”, onde Dando repete incessantemente “Lá vem a cabeça de Gwyneth em uma caixa”, fazendo uma sinistra alusão ao filme “Seven”, de David Fincher, lançado em 1995. “C’mon Daddy”, segundo consta, aborda a descoberta de Liv Tyler sobre seu pai biológico, Steven Tyler, de forma perturbadora. A brilhante “Tenderfoot” é um mea culpa, admitindo erros e a probabilidade de repeti-los, tudo isso embalado em uma melodia cativante.
“One More Time” e “Tenderfoot”, completamente diferentes entre si, mostram um artista em dúvida sobre o que fazer e, ao mesmo tempo, se assumindo falível. A primeira é um rockão enguitarrado e curto, que mostra a boa forma da bateria de Murph e a multiplicidade de guitarras e timbres que Dando decidiu enfiar em menos de 2min:40s. A segunda é ótima, também enguitarrada, mas bem próxima de um hardcore ritmado, à la Replacements ou algo do gênero. Por fim, a doideira mutante de “Secular Rockulidge”, que é o que não parece ser, ou vice-versa. Foi com este disco na manga que Dando (mais Murph, o guitarrista John Strohm e o baixista Bill Gibson) desembarcaram no Brasil em julho de 1997. Tocaram em datas em São Paulo e Santos, além de um inesquecível show no Rio de Janeiro, mais precisamente, no Imperator, no dia 19 de julho. A presença dos sujeitos se deu em meio às atrações do Skol Rocks, um festival que premiaria bandas novas. Além dos americanos, os paulistas do Virgulóides também estiveram presentes, além de algumas das finalistas do concurso. As outras apresentaram-se numa noite que teve Barão Vermelho e Angra. Em meio às entrevistas de Dando para a mídia brasileira, ele disse que “A América do Sul é o lugar do futuro”, não sabemos se sob efeito de substâncias estranhas ou movido pela intrigante sinceridade. O fato é que, em seu futuro, a América do Sul estava realmente presente.
“Car Button Cloth” está disponível nas plataformas de streaming em sua versão original, de 1996. A versão de luxo só pode ser achada por meios “alternativos” na Internet, mas está à venda em diferentes vinis, de diferentes cores, no site da Fire Records. É um dos grandes discos perdidos daquela obscura metade de anos 1990, possivelmente uma outra década dentro de uns três, quatro anos. Ouçam, é maravilhoso e personalíssimo.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.