Garbage lança seu melhor disco desde os anos 1990

 

 

 

 

Garbage – Let All That We Imagine Be The Light
45′, 10 faixas
(BMG)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Eu estava errado quando pensei que o Garbage se tornara uma banda meramente nostálgica, incapaz de reeditar o frescor de seus primeiros anos. Achei que o quarteto liderado pela cantora e compositora Shirley Manson e que tem o produtor Butch Vig na bateria, estava fadado a reprisar tiques e taques cada vez mais gastos, fazendo a delícia de velhos fãs emburrecidos, voltados para um passado de trinta anos atrás. Que nada. Também estava errado ao achar que o grupo só seria interessante enquanto uma novidade alternativa e surpreendente ao rock dos anos 1990, especialmente ao grunge/alternativo. Qual o quê. Este “Let’s All That We Imagine Be The Light”, oitavo disco de inéditas do grupo, é uma bem acabada obra que, se não rompe totalmente com os álbuns anteriores, oferece uma oxigenação muito bem-vinda na estética do Garbage, sem perder sua identidade. Ou seja, há a simbiose entre eletrônica e guitarras, mas, com o passar do tempo, e de forma inquestionável, Shirley Manson se tornou a única figura criativa da banda, se apossando dela como um veículo para sua arte. Pode parecer redundante pensar desta forma, mas, é bom lembrar, quando o Garbage surgiu, em 1994, Shirley era apenas a imagem do grupo. Butch Vig, então encacifado pela produção de álbuns como “Nevermind” (1991), do Nirvana, e “Siamese Dream” (1993), do Smashing Pumpkins, era o cérebro por trás de tudo. Ainda bem que Shirley tomou esse posto.

 

O próprio Vig percebeu essa importância aumentando com o tempo e usou suas habilidades de produtor a favor deste movimento. O resultado poderia ter vindo no trabalho anterior, “No Gods, No Masters”, de 2021, mas sua safra de canções não era exatamente boa. Agora, não só temos um punhado de ótimas composições, como temos mais foco, mais poder de fogo e um quase-conceito formado ao longo das dez faixas, no qual Shirley, mulherão atuante, engajada em várias causas, se posiciona, destemida, sobre o estado de coisas, oferecendo este ponto de vista feminino e feminista, sempre necessário. Sendo assim, “Let All That We Imagine Be The Light” é uma declaração de intenções, talvez só inferior à ainda imbatível estreia do Garbage, naquele álbum cor de rosa e homônimo, de 1994. O que não havia há mais de trinta anos era, justamente, este engajamento político e pessoal, algo que, a meu ver, turbina ainda mais o trabalho. É possível que a turma do “rock não é político” se posicione contra, mas tenho certeza que o Garbage não está cantando para este tipo de audiência. Pelo contrário.

 

As duas primeiras faixas dão a tônica exata do álbum. “There’s No Future In Optmism”, com uma embalagem technopop pesadinha e bem feita, abre os trabalhos, tem letra que coloca cenas de violência, com helicópteros sobrevoando uma cidade em meio a policiais reprimindo conflitos nas ruas em contraponto à força de um amor bem compreendido e vivido, que seria capaz de modificar o jeito das pessoas pensarem o futuro. Já “Chinese Fire Horse” é uma cacetada vigorosa em termos sonoros, mas enaltece as pessoas nascidas no Ano do Cavalo de Fogo, uma das sessenta combinações astrais do Horóscopo Chinês, e signo de Shirley Manson, nascida em 1966. A letra é um brado contra o etarismo e a mania da modernidade decretar o fim da utilidade de pessoas que já ultrapassaram os sessenta anos. Shirley se vale das características de sua combinação astral para valorizar palavras como “experiência”, “idade” e se colocando em oposição a jovens que não têm quase nada a dizer. Tudo isso feito com guitarras altas, batidas que mesclam programações e bateria real e um clima de exorcismo de ideias burras e toscas, típicas do senso comum embrutecido.

 

À esta altura, o ouvinte já está capturado e querendo mais e mais palavras de Shirley. Ela não se faz de rogada e atinge o ápice da interpretação em “Sisyphus”, que foi condenado a empurrar uma pedra gigantesca por uma ladeira íngreme, apenas para vê-la sempre rolar de volta antes de alcançar o topo, obrigando-o a recomeçar indefinidamente. Aqui a letra fala de insistência em meio a um arranjo maravilhoso, no qual os vocais de Shirley são pulverizados em mil variantes, num efeito belíssimo. “Get Out Of My Face AKA Bad Kitty” é mais uma faixa imorredoura e cheia de timbres oitentistas, especialmente uma linha de baixo onipresente e uma guitarra que solta acordes familiares ao longe. “R U Happy Now” se equilibra entre o pop eletrônico de alto impacto e aquela aura rock, constituindo-se numa faixa que poderia ser um remix do Depeche Mode. A pungente e confessional “The Day I Met God” encerra o álbum, com questionamentos e constatações sobre o espaço para o divino e o transcendental nas vidas das pessoas em tempos tão materialistas. O verdadeiro Deus. Ou algo assim.

 

“Let All That We Imagine Be The Light” traz a melhor encarnação do Garbage em trinta anos. Para uma banda que não parecia ir muito longe em termos de interesse e que parecia durar mais do que o necessário, tudo aqui é ótimo e surpreendente. Bravo.

 

 

Ouça primeiro: “There’s No Future In Optmism”, “Chinese Fire Horse”, “Get Out Of My Face AKA Bad Kitty”, “R U Happy Now”, “The Day I Met God”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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