Conversando com José Emílio Rondeau
É um privilégio falar com Zé Emílio Rondeau. Pertencente a uma casta elegantíssima de jornalistas multifunção, ele tornou-se um dos mais respeitados nomes da crítica musical brasileira a partir dos anos 1970. Além disso, é cineasta, criador e produtor musical, função que exerceu poucas e ótimas vezes em sua vida. Três bandas tiveram o privilégio de tê-lo em estúdio – Camisa de Vênus, Legião Urbana e Picassos Falsos, todas em seus discos de estreia. A pilotagem do estúdio da EMI-Odeon em 1984 gestando o que viria a ser o primeiro álbum da Legião, é o assunto de “Será!”, o livro que ele lança agora pela Editora Máquina de Livros, com prefácio de João Barone. Aqui ele conta a história desse encontro, como estabeleceu regras e configurações necessárias para dar conta de uma banda inexperiente, mas extremamente decidida sobre o que queria fazer em sua carreira. Para quem estava vivo e sintonizando o dial naquele fim de 1984/85, as canções da Legião já faziam arte da trilha sonora daquela época. Marcantes, fortes, únicas, agora temos acesso aos elementos e fatos que as fizeram ser daquele jeito.
Além de tudo, Rondeau é um gentleman. É sempre ótimo falar com ele. Solícito e interessado em ajustar contas com seu eu de quarenta anos atrás, ele respondeu às nossas perguntas com sua elegância habitual e a gente te conta como foi, em texto, áudio e vídeo. Aproveite.
– São quarenta anos do primeiro disco da Legião. Por que escrever sobre ele agora? O que aconteceu?
JER: Pois é, eu nunca tinha pensado em escrever esse livro. Eu falei dele ao longo desses quarenta anos em comentários pra livros, entrevistas, documentários, mas nunca tinha pensado em fazer esse livro. Aconteceu que o Sergio Ruiz, editor da Veja, revista pra qual eu colaboro recentemente, uma vez ou outra, me veio com essa pergunta: “Por que você não escreve agora, no ano dos quarenta anos do disco, um livro sobre a feitura dele?”. Eu fiquei com aquela pulga atrás da orelha e vai, passa o tempo, passam cinco meses e pensei: “vou fazer”. E acabou que coincidiu com a Máquina de Livros querer fazer o livro e acabou sendo feito. E pra mim foi uma chance de revisitar aquele período de uma forma mais profunda também. Afinal de contas, quarenta anos são quarenta anos e você não lembra de tudo de um jeito tão profundo também. Todas as pessoas que estão no livro e ajudam a construir a história oral daquela época, daquele trabalho, contribuíram com suas memórias também, e algumas, conflitantes. Você lembra das coisas de um jeito e eu vou lembrar de outro. E isso é bacana porque o livro às vezes mostra, claramente, essa divergência. Aconteceu assim, aconteceu assado. E é assim que a gente se lembra. O que resultou daqueles meses de trabalho. O mais importante é isso: nesse livro, mais que tudo, eu quis homenagear o disco, porque ele é muito importante pra discografia de rock do Brasil e pra discografia da Legião, ele mostra a banda num processo de transformação e evolução muito grande, que desencadearia no segundo disco deles, quando estariam muito mais fortes, amadurecidos, muito mais preparados e compreendendo muito bem o que eles estavam fazendo ali no estúdio, aquele intensivão que a gente teve lá atrás.
– Você não é músico e nem tem uma vivência considerável de estúdio. Antes de você, dois produtores tentaram e não conseguiram levar adiante o álbum da Legião. Acha que, para produzir esse disco, era preciso mais informação sobre música e atualidades do que técnica?
JER: Tanto foi que não deu certo com os dois primeiros produtores. O Marcelo Sussekind e o Rick Ferreira eram craques. Eles eram excelentes produtores. O Marcelo era uma escolha natural, ele tinha produzido o segundo disco dos Paralamas. O Rick havia trabalhado com o Raul Seixas em todos os discos dele, então eram pessoas extremamente aptas e tecnicamente muito mais talentosas do que eu, dez mil vezes mais. O que contou a meu favor, mais que tudo, foi a afinidade de gosto e a compreensão do caminho que a Legião tinha traçado. Era mais próximo na questão geracional e por uma sensibilidade, por gosto musical. Eu conhecia as mesmas coisas que eles conheciam, curtia as mesmas coisas que eles curtiam e, um pouquinho mais até, porque eu já tinha dado algumas voltas no quarteirão a mais do que eles. Então eu acho que foi um encontro de sensibilidades que ajudou muito nessa capacidade da gente fazer o disco juntos. Eu não tinha experiência de produção, exceto pelo primeiro disco do Camisa de Vênus, o Amaro Moço, técnico de som, tinha experiência maior trabalhando com samba, apesar dele ter feito um disco da cantora Rosana com o Lincoln Olivetti e o que acontece é que eles também tinham pouquíssima experiência de disco, na verdade, tinham feito uma fita demo, que foi gravada com o Sussekind, não chegaram a gravar nada com o Frank. Eu não sabia disso, só muito tempo depois eu vim saber dessas tentativas. O que havia era diálogo, era casamento de ideias, convergência de interesses, eram ouvidos parecidos.
– Parecidos e unidos por coisas que não estavam disponíveis aqui, pro público brasileiro. A gente tinha naquela época as iniciativas solitárias da Rádio Fluminense FM, das rádios de São Paulo, mas eram artistas que ainda não tinham lançado discos no Brasil. Uma coisa que você frisa no livro – e eu concordo com você – é que a Legião Urbana era uma banda única no Brasil naquele momento, não só pelos motivos que caracterizaram a Legião com o tempo – o messianismo do Renato – mas pelo som. Como você percebeu isso? Você menciona a fita demo no livro, mas como foi essa sensação de que aquilo era inédito por aqui.
JER: Exatamente. E Legião tinha, sobretudo, uma verdade, uma força e um cantor que, para mim, era fundamental. Ele cantava rock como ninguém cantava rock no Brasil. Eu não estou falando de punk, não estou falando de pop, estou falando de rock. Eles têm essa veia original punk, mas, para mim, ele era um grande cantor rock e pop. E isso me impressionou muito porque eu nunca tinha ouvido um cantor assim, ainda mais naquela geração. Então aquilo me chamou muito atenção. As letras eram maravilhosas, claro. As músicas eram sensacionais, mas, sobretudo, a forma daquele cara cantar me enfeitiçou. Eu achei incrível. E durante a gravação, várias vezes, ele me derrubava de emoção cantando. Como é que saiu isso? Eu não canso de lembrar disso. “Será”, que, pra mim, é a faixa mais redondinha, superpop, super cartão de visita, quando ele foi gravar as vozes, uma das últimas coisas a serem feitas no disco, as vozes definitivas, quando ele foi cantar “Será”, nada do que ele cantou ali foi conversado, tipo “eu vou botar minha voz assim, vou botar minha voz assado”, simplesmente saiu. Não foi conversado. Ele fez uma, depois fez a outra. Cacete. E você vendo aquilo ao vivo, na sua cara, a mágica musical sendo ali conjurada. Então foi isso que me pegou, para voltar ao início da pergunta. Eu me senti um privilegiado por estar ali, assistindo de camarote tudo isso.
– E já que a gente mencionou o que estava acontecendo lá fora, o que você estava ouvindo quando iniciou a produção do disco? Usou algo dessas influências no disco?
JER: É difícil lembrar, mas tinha muito Prince, Peter Gabriel, U2, Bruce Springsteen, que eram coisas que estavam muito presentes naquela época. Eu não vou lembrar de nenhuma outra coisa em especial…
– Mas esses caras têm em comum a coisa da novidade, não a mesma que as bandas pós-punk inglesas da época, mas a novidade da modernidade do som, especialmente o Peter Gabriel e o Prince que eram caras que estavam experimentando em meio à questão pop…
JER: Sim, sim, mas também toda aquela outra vertente, predominantemente da Inglaterra, Gram Parker, Gang Of Four, The Cure não era muito a minha praia, mas que eu conhecia…The Smiths, que era inevitável, incontornável, mais New Order que Joy Division…Tinha muita coisa acontecendo naquela época, que você vai filtrando e vai entrando e fica. O que não interessa, sai do outro lado. Eu acho qu tinha também outras influências, minhas e deles, que também estão ali, no disco. Eu até estava conversando um dia desses sobre o quanto tem de Beatles no disco da Legião. Porque “Será” é puro Beatles, você tem a dobrada do piano com a guitarra, que é Beatles puro. Então você pensa: “Como pode Legião Urbana e Beatles?” e eu digo: “tudo a ver”. Eles adoravam Beatles, e o Dado, mas também o Renato, estavam fascinados por estar na mesma gravadora dos Beatles (a EMI-Odeon). Os caras se amarravam naquilo.
– Renato era um cara que tinha um conhecimento enciclopédico de música.
JER: Exatamente, um cara que tinha ouvido coisa pra caramba, muito mais que a geração dele. Era um cara muito interessado em ouvir tudo, querer absorver tudo.
– Uma coisa que você menciona no livro: ao mesmo tempo em que a Legião era uma banda iniciante, no sentido que estavam entrando numa gravadora pela primeira vez, gravando um disco e tal, ao mesmo tempo, era uma banda muito convicta do que estava querendo fazer. Como você lidou com essa dualidade?
JER: Olha, com muito jeito e com muita noção do que era importante pra eles e, ao mesmo tempo, descobrindo no convívio – porque eu só fui conhecer eles no estúdio. Eu nunca cheguei e disse “vamos tomar um café, uma cerveja”. Eu nunca tinha visto eles. Não, no primeiro dia eu cheguei e disse: “olá, muito prazer, vamos trabalhar”. Foi nesse convívio que a gente começou a se compreender melhor. E você vai, aos poucos, entendendo que aquele músculo musical pode ser exercitado e vamos por esse caminho aqui, aquela pessoa tem isso. Já aquela outra pessoa tem outra coisa que ela gosta, era tudo uma questão de aprender quais eram os limites que eles tinham, eu tinha, o Amaro (Moço, técnico de som) e ver o que a gente poderia fazer para esculpir o som da Legião Urbana. Que seria o grande cartão de visitas da banda. Porque o negócio é o seguinte: a Legião entrou uma no estúdio e saiu outra. Evoluiu muito. Esse disco é representativo desse intensivão, dessa evolução pela qual eles passaram. É quase um documentário dessa evolução. Porque ele mostra desde a coisa super punk que eles mantiveram, ainda forte. E tem o superpop do “Será”. Eu tava ouvindo o Dado Villa-Lobos, numa entrevista antiga, falando que, quando as pessoas ouviram “Será”, pensaram que era um sucesso novo do Jerry Adriani, por causa da voz parecida, uma coisa de um ídolo pop eterno, das antigas no Brasil. E, ao mesmo tempo, tem “Ainda É Cedo”, que é uma balada, na verdade, mas que é tão descabelada, mas extremamente romântica, tanto que foi gravada depois como um bolero por Nelson Gonçalves. E você tem “Por Enquanto”, que é uma coisa ultraromântica, que jamais esperaria vir de uma banda que se dizia punk, fechando o disco. Então, acho que ali tem uma jornada muito bonita, do começo ao fim do disco, em que você vê esse amadurecimento da banda.
– No livro você descreve o comportamento de Renato Russo e Dado Villa-Lobos como duas pessoas colaborativas e afeitas ao diálogo. Como foi lidar com o baterista Marcelo Bonfá, descrito como “o mais difícil” do grupo? E Renato Rocha? Eu o acho decisivo para o som da Legião Urbana e sua saída modificou totalmente a pegada do grupo. Você concorda?
JER: Isso eu descobri décadas depois, esse sentimento do Bonfá em relação ao Negrete (Renato Rocha), eu não sabia, isso nunca veio à tona. Pra mim – minha lembrança – eles sempre foram muito unidos e havia um diálogo constante entre eles. E aí, durante a gravação, houve momentos de tensão entre todo mundo. Eu com todos eles, e eles todos comigo, mas em graus diferentes. Nenhum rompimento, nenhuma coisa drástica. A única vez em que houve quase um rompimento, foi com o Bonfá, mas foi algo que foi contornado rapidamente. Mas, também é aquela coisa – são convicções muito fortes, desejos muito fortes de fazer do jeito que você acredita. Por um lado e por outro. No fim das contas, o que todo mundo estava querendo ali era o bem do disco. Que o disco ficasse do cacete. E, no fim das contas, ficou. Eu não vou lembrar de todos os detalhes, mas tem coisas que, pra mim, poderiam ser diferentes, e tenho certeza que pra eles também, mas o conjunto todo é muito harmônico e representativo deles, isso é sempre importante frisar: o disco não era meu, da gravadora, do técnico, o disco era deles. Tinha que ser representativo deles, da identidade musical deles. Isso, para mim, era o mais importante e que sempre prevaleceu.
– E essa identidade transparece no fim, tanto que, quando chega o “Dois”, que chega um pouco mais de um ano depois, é como se fosse uma continuação do primeiro, com essa coisa de novas facetas incorporadas continuando…
JER: Essa transição que você mencionou é muito importante porque a primeira música do lado A, que abre o segundo disco, é uma música que a gente fez lá atrás, “Daniel Na Cova Dos Leões”, que eu menciono no livro. É uma sequência lógica perfeita, quando você termina “Por Enquanto”, a última faixa do primeiro disco e começa “Daniel…”, que continua e expande aquele panorama…
– E ainda tem o detalhe do trecho em off de “Será”, que é tocado pouco antes de entrar “Daniel…”
JER: Exatamente!
– Conectando tudo, né? Certamente que não é por acaso…
JER: Certamente não é…
– E, Zé, me diga uma coisa: quando o disco foi lançado e chegou na loja, como foi a sua reação? Você gostou logo de cara do produto final, capa, encarte….
JER: Eu gostei de tudo. De tudo. Eu adorei, achei maravilhoso…Fiquei orgulhoso, com o sentimento de missão cumprida. Só fiquei assustado porque demorou a pegar. Saiu e não pegou de primeira, demorou um pouquinho. Mas quando começou a tocar “Será” nas rádios, a coisa deslanchou.
– E tinha outras músicas ali que eram muito boas, meio “lado B”, tipo “Teorema”, tinha “Ainda É Cedo”, que é maravilhosa e “Soldados”, que tinha aquele piano e todo mundo dizia que parecia com U2…Era novo pro Brasil da época mesmo…Quando o disco saiu você já estava trabalhando na revista Bizz (cujo primeiro número saiu em julho de 1985)?
JER: Eu ainda não estava na Bizz. Eu trabalhava na TV Globo, no Fantástico. E aí trabalhei no Rock In Rio e logo depois fui pra Bizz.
– E você lembra de ter lido na Bizz ou em outros lugares, resenhas sobre o disco?
JER: Eu sinceramente não lembro de ter lido nada na época. Só fui ler agora para recuperar o que se falou do disco na época. Engraçado foi ler uma resenha do José Augusto Lemos, que foi meu colega na Bizz, depois do disco ter saído, e ele falando coisas superbacanas e ele juntava com o disco do Smack, “Ao Vivo no Mosh”….
– Eles adoravam falar sobre essas bandas paulistas, né? Akira S….
JER: Sim, sim! Era uma coisa de brodagem, como acontece…A gente vive no mesmo habitat, todo mundo vai aos mesmos lugares, mesmos bares, mesmas boates, faz coisas juntos….e é isso aí, faz parte.
– Desses primeiros discos do rock brasileiro, tem algum outro que você gostaria de ter produzido? Eu lembro que foi você – acho – que fez a resenha do primeiro disco da Plebe Rude, “O Concreto Já Rachou” e que você tinha se encantado com ele, mas que, ia pensar em produzir e viu que alguém tinha sido mais rápido que você, o Herbert Vianna (que produziu, de fato, o disco). Você lembra disso?
JER: Pode ser. Pode ser. Mas eu não lembro! Sobre os discos dessa época, nada me vem à cabeça. A única coisa que eu gostaria de ter produzido e acabei produzindo, foi o Picassos Falsos. Ouvi uma demo e me apaixonei. Bati na porta da gravadora de novo, dizendo – “Agora tenho dois discos produzidos” e deu certo. Consegui produzir, um disco do qual eu me orgulho muito também.
Nota do Editor: De fato, na resenha de “O Concreto Já Rachou”, assinada por JER, no número 9 da Bizz, publicado em abril de 1986, ele fala sobre isso.
– E é um discaço esse primeiro do Picassos Falsos. Todo mundo sempre lembra do segundo deles, o “Supercarioca”, que é maravilhoso, mas eu adoro esse primeiro álbum deles. Eu acho uma coisa de maluco, “Quadrinhos” é uma coisa maravilhosa, em alta velocidade…
JER: Exatamente!
– Bom, pra fechar a nossa conversa, vamos falar do Farol (Newsletter que Zé Emílio publica semanalmente no site Substack), você já está há dois anos com ele, eu assino com felicidade e queria saber como tem sido isso. Porque você é um craque, inspirou muita gente, me inspirou, lembro de ler você com 14 pra 15 anos….é muito bom poder te ler. Como está sendo?
JER: O Farol não me deixa enferrujar. É um trabalho diário, eu faço tudo sozinho e é muito gostoso porque eu continuo fazendo aquilo que me motivou no início da minha vida jornalística, que é “cara, você tem que ouvir isso”, “cara, você já conhece isso?”, trazer uma porção de coisas que vão pintando na minha antena. Músicas novas, artistas novos, assuntos que merecem ser aprofundados, novas ideias….isso é o que me guia e tá sendo muito gostoso porque o Farol tem um público constante e crescente, isso é muito bacana. É gratuito, eu não peço dinheiro, pode ser que faça isso um dia, mas, por enquanto, não. E a taxa de leitura é sempre enorme, isso pra mim é muito gostoso. Opa, leram, e o fato de terem lido é maravilhoso.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.