Bon Iver abraça a felicidade em novo álbum
Bon Iver – “SABLE,fABLE”
42′, 13 faixas
(Jagjaguwar)

A gente, aqui na Célula Pop, preza por algo na música pop – identidade. Aquela sensação de ouvirmos alguma canção e notarmos que se trata de um determinado artista, de imediato. Numa época como a nossa, em que o meio é mais importante que a mensagem, essa preocupação se tornou quase injustificada. Mas, repito, não para nós. E a música pop recente também passou a abdicar dessa exigência em favor de números, clicks, vendas e tal. Não que antes não fosse assim, mas isso se tornou determinante na indústria. Por isso é tão importante a existência de artistas que também vão contra essa lógica. Justin Vernon é um desses caras. Seu alter-ego artístico, Bon Iver, é responsável pelo surgimento de uma sonoridade muito bem resolvida, capaz de responder por sua identidade. Foi em 2008, quando Vernon surgiu do nada com o álbum “For Emma, For Ever Ago”, sob o nome de Bon Iver, com uma história sensacional: todas as canções foram gravadas numa cabana isolada nas montanhas nevadas do Wisconsin, após uma decepção amorosa terrível. O folk parecia dar a tônica daquele som, mas os efeitos vocais, o uso das microfonias e as intervenções eletrônicas, que mais pareciam obra de seres misteriosos e ocultos, davam um tom muito diferente. Com o sucesso do disco, Bon Iver iniciou uma carreira em que a manutenção desse traço sonoro foi a tônica. Dezessete anos depois, aqui está o sexto álbum dessa história, o ótimo “SABLE,fABLE”.
Este é um disco atípico na carreira de Bon Iver, assim como foi o anterior, “i,i”, mas por motivos diferentes. Enquanto aquele era, basicamente, um álbum em que as canções surgiam de uma forma meio rascunhada, misteriosa, inacabada, mas mantendo uma unidade que só se mostrava após a audição completa, aqui Vernon fala sobre uma inesperada mudança de estado de espírito. Ele atravessou episódios repetidos de crise de ansiedade e esgotamento após várias apresentações ao vivo e se preparava para um hiato indeterminado. As três primeiras canções de “SABLE,fABLE”, que são colocadas no primeiro disco (o álbum é duplo) servem como uma polaroide deste momento de instabilidade e dor. Poderia ser apenas um EP anunciando esta pausa na carreira mas, em pouco tempo, Vernon reencontrou a inspiração para novas composições e uma alegria inexplicável, fatores que o motivaram a escrever as nove faixas que estão no segundo disco. Desta forma, o álbum duplo serve como uma precisa radiografia desta mudança de estado de espírito e a diferença entre as três canções iniciais para as nove restantes é gritante.
Vernon declarou em entrevista recente ao jornal inglês “The Guardian” que não chegou a pensar em suicídio diante dos problemas de ansiedade que enfrentou, mas que não se incomodaria “se fosse atropelado por um ônibus”. Esta condição se arrastava desde antes da pandemia da covid-19 e a chegada do isolamento social e a interrupção de compromissos públicos – shows, entrevistas, agendas – ajudaram a serenar seu ânimo. Em 2019 ele compôs uma canção que ficou arquivada e que servia como uma peça terapêutica de que, um dia, ele superaria aquilo tudo e voltaria a um estado de espírito mais solar. “Everything Is Peaceful Love” entrou em “SABLE,fABLE” e, provavelmente, é a sua grande, imensa canção. Mas, como dissemos, antes de analisar essas nove faixas que marcam um verdadeiro abraço à uma inesperada alegria de viver, vamos às três primeiras, que servem como uma câmara de descompressão. “Things Behind Things”, “Speyside” e “Awards Season” guardam a assinatura sonora do Bon Iver, aquele folk cheio de efeitos, ecos e sons, que, ora dão a impressão de serem gravados em meio a uma tempestade de areia, ora sob o mar. São tristes, silenciosas e belas. O grande tesouro virá a seguir.
O disco 2 abre com “Short Story”, uma peça ao violão, com pingos de teclados e cordas sintetizadas, logo invadidas pelos vocais modificados pelos efeitos. É uma vinheta do que virá a seguir, mas logo identificamos um elemento importantíssimo, que permeará todas as outras faixas – a batida. Dá pra dizer que Vernon apresenta aqui um desfile de pequenos e alienígenas r&b’s eletrônicos e gentis, que passeiam sob o sol da manhã. Logo após temos a própria “Everything Is Peaceful Love”, que parece um gospel de outro mundo, com percussão mixada logo na frente dos vocais e dos instrumentos de corda, que entram em seguida. A melodia é linda, realmente exuberante. “Walk Home” já tem andamento mais lento e batida mais pronunciada, com efeitos vocais ainda mais presentes e uma linha de baixo gorducha, que dá peso e profundidade. “Day One” é mais uma canção que parece um gospel de outro mundo, com pianos e andamento com vários vocais, como se fossem um coro. “From” é uma lindeza mais fluida e com cara de sucesso dos anos 1980, lembra até “Just To See Her”, hit de Smokey Robinson daquele tempo. O vocal em falsete lembra os grandes cantores do estilo. “I’ll Be There” também tem pianos e andamento r&b em meio a corais e arranjo que também evocam os anos 1980. “If Only I Could Wait” é um dueto com Danielle Haim, que se desenvolve em meio a efeitos e guitarras aquáticas, deixando ver ocasionalmente a estrutura clássica que está sob tudo. “There’s A Rhythmn” é outra belezura à la Motown dos anos 1980. Por fim, “Au Revoir” encerra o percurso como se fosse trilha sonora de documentário sobre o degelo das planícies do norte com a chegada do verão.
“SABLE,fABLE” é daqueles álbuns que deixam tudo em suspenso. Não dá pra saber o próximo passo do Bon Iver, mas, se há tanta inspiração para compor e gravar canções lindas, ficamos eperando que essa faceta solar volte em algum momento do porvir. Lindeza de álbum.
Ouça primeiro: “From”, “Day One”, “If Only I Could Wait”, “I’ll Be There”, “Everything Is Peaceful Love”

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.