“Andor” – O melhor “Star Wars” já feito
Há uma cena sensacional em “O Balconista” (1994), na qual Randall (Jeff Anderson) e Dante (Brian O’Halloran) discutem sobre os empreiteiros de obras da segunda Estrela da Morte, em referência a “O Retorno de Jedi” (1983), o terceiro filme da saga de “Star Wars”. Randall defende o fato de que os construtores e empregados da construção da megaestação espacial do Império não deveriam ser vistos como pessoas necessariamente malignas, visto que estavam ali por conta de uma oportunidade de emprego e tinham família para sustentar e outros motivos que não tinham a ver com a intenção da obra – destruir mundos inteiros e afirmar a soberania e opressão do Império sobre a galáxia. Dante hesita em concordar, até que um construtor de telhados, que está na Quick Stop, a loja em que os dois trabalham, se aproxima e conta sua própria história na profissão, tendo que aceitar trabalhar para bandidos em nome da necessidade do sustento. Este olhar do diretor Kevin Smith, um dos maiores fãs de “Star Wars” vivos, mostra a possibilidade de abordar a história criada por George Lucas em múltiplas visões, muitas vezes trazendo a trama para a realidade mais cotidiana. De alguma forma, quando estava vendo a segunda temporada de “Andor”, me lembrei dessa “conversa” de dois fãs da franquia e imaginei o quanto gente como eles deveria estar realizada com esta sensacional série. Porque “Andor” tem o imenso mérito de depurar a fantasia da narrativa, deixando apenas o que há de mais humano na história, para o bem e para o mal. Por isso, ela é histórica. Nada menos que isso. Vejamos.
O personagem Cassian Andor, vivido por Diego Luna, foi apresentado ao grande público em “Rogue One”, longa de 2016, que contava a história imediatamente anterior aos eventos do primeiro filme de “Star Wars”, lançado em 1977. Era basicamente uma história de espionagem militar, com toques sentimentais aqui e ali, procurando se concentrar muito mais em apresentar a Aliança Rebelde como uma facção insurgente contra o Império, passando, pela primeira vez dentro da trama, da espionagem para a ação propriamente dita. Ainda que seja um longa de dez anos, não darei maiores spoilers sobre a história, mas asseguro que é, depois de “O Império Contra-Ataca” (1980), o melhor longa inspirado na série criada por George Lucas. As cenas são ótimas, o elenco é sensacional, contando com ótimos atores, como Felicity Jones e Forest Whitaker, além de apresentar uma direção bacanuda de Gareth Edwards e um roteiro maravilhoso, escrito por Tony Gilroy e Chris Weltz, uma dupla cascuda já com bastante rodagem em Hollywood. O sucesso foi tanto que Gilroy e Luna decidiram voltar ao universo da franquia com “Andor”, pensando numa série que propunha mostrar, não só a história de Cassian, mas como ela se entrelaça com eventos que culminarão na própria criação da Aliança Rebelde e como essas forças políticas e militares insurgentes conseguiram limar diferenças, movidas pelo enfrentamento de um inimigo comum. E como a descoberta da construção da Estrela da Morte se tornou o seu maior batismo de fogo.
A primeira temporada de “Andor” foi ao ar em 2022, após vários problemas e atrasos por conta da pandemia da covid-19. Tony Gilroy assumiu a posição de “showrunner” dentro do projeto, além de escrever todos os roteiros dos doze episódios. Luna retornou ao papel principal, com presenças importantes de Stellan Skarsgaard (como Luthen) e Adria Arjona (como Bix) no elenco. A trama iniciou mostra Cassian em busca de suas origens e como esta trajetória o colocou em rota de colisão com os procedimentos políticos do Império. Antes de haver qualquer Aliança Rebelde, os pequenos focos de descontentamento na galáxia não ultrapassavam contextos pequenos, mantendo-se isolados. O que resta para Cassian e sua companheira, Bix, é fugir das forças policiais e, ao fazerem isso, acabam entrando em choque com autoridades imperiais. O legal de “Andor” é que Cassian, Bix e mesmo as forças imperiais são pessoas absolutamente ferradas dentro da escala social. São trabalhadores braçais, obstinados, enfrentando policiais corruptos e maus, dentro de sociedades desiludidas e alienadas do mal causado por um governo central fascista, liderado por gente como o Imperador Palpatine e Darth Vader, não exatamente conhecidos por sua preocupação com o próximo e compromisso com o fim da desigualdade. Ao longo dessa primeira temporada, Cassian acabará chamando a atenção de uma figura misteriosa, Luthen, que o salva de uma enrascada e o recruta para novas operações clandestinas. No meio do caminho, Andor vai perdendo amigos, parentes e precisando viver em movimento. Ao fim dessa primeira leva de episódios, vemos que as tais operações clandestinas de Luthen têm algo em comum – o ataque sistemático ao Império e que há gente politicamente influente metida nisso.
A segunda temporada aprofunda o lado político da trama, mostrando vilões imperiais sem qualquer escrúpulos, como a supervisora Dedra Meera (vivida por Denise Gough), que já aparecera na primeira fase, mas que ganha protagonismo quando sua conduta impiedosa chama a atenção do Diretor Orson Krennick (Ben Mendelsohn, repetindo seu papel em “Rogue One”), que decide incluí-la num plano de dissuasão e propaganda militar que esconderá uma operação secreta de mineração imperial no planeta Ghorman. Em meio a esta tensão crescente, vemos os procedimentos burocráticos do Império em ação, vários funcionários de segundo e terceiro escalões totalmente inseridos na máquina administrativa opressora sem nem terem ideia do que estão realmente fazendo e, claro, também temos as reações populares crescentes, fruto de todo tipo de injustiça, repressão e violência impostas pelas autoridades. Além disso, vemos como esse cenário vai impactar no Senado Imperial, especialmente em futuros líderes rebeldes, como Mon Mothma (Genevieve O’Reilly, também repetindo papel de “Rogue One”) e Bail Organa (Benjamin Bratt), que precisarão passar da retórica política para a ação clandestina à medida que os fatos vão se acirrando. Em meio a tudo isso, Cassian Andor vai entendendo seu papel dentro deste contexto rebelde após ver tantas e tantas situações de opressão imperial, especialmente o massacre de Ghorman, mostrado no episódio 8 da segunda temporada, desde já, um dos maiores da história das séries televisivas. Sem exagero. Com os três últimos episódios disponibilizados ontem, “Andor” encerra sua ação de modo a encaixar perfeitamente com o início de “Rogue One”. Todos os fatos são perfeitamente encadeados, sem pontas soltas e com soluções bastante críveis para as diferentes tramas que surgem ao longo da narrativa.
“Andor” tem inúmeros méritos. A agilidade dos roteiros é impressionante. O conhecimento da história original e a criatividade total para encontrar tramas e subtramas dentro do universo de “Star Wars” é igualmente sensacional. Tony Gilroy mergulhou na parte humana da história, deixando temas como “jedis”, “Força”, “lado negro” de lado e procurando entender as motivações de pessoas comuns, desprovidas, que constatam a maldade e a opressão dentro do seu total cotidiano. Que experimentam a injustiça da banalidade e, a partir daí, vão entendendo o contexto maior se formando. Os efeitos especiais são perfeitos, as criações arquitetônicas, cenários, figurinos, tudo é implacavelmente sem falhas. E, como tal, algo desta magnitude precisa ter uma duração compatível. Duas temporadas, vinte e quatro episódios. E só. Se você ouvir falar em trilogia de “Star Wars”, não dê ouvidos a quem fala de “primeira trilogia” ou “segunda trilogia” ou “trilogia final”. O que importa é esta outra trilogia: as duas temporadas de “Andor” e “Rogue One”. Imperdível para fãs e perfeita para cativar neófitos.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.