A salsa-punk dos Fabulosos Cadillacs completa 30 anos
Em artigo para a Folha de São Paulo em junho de 1995, Herbert Vianna, vocalista e guitarrista dos Paralamas do Sucesso, foi categórico: “Se tudo vier a se confirmar, os Cadillacs serão detentores incontestes do posto de maior banda latino-americana”. A razão de tão grande expectativa era Rey Azúcar, o sétimo álbum de estúdio do noneto argentino.
O álbum seria lançado alguns dias depois, tendo Los Fabulosos Cadillacs a seguinte formação: Fernando Ricciardi (bateria), Vaino Rigozzi (guitarra), Sergio Rotman (sax), Daniel Lozano (trompete), Vicentico (voz), Sr. Flavio (baixo), Fernando Albareda (trombone), Gerardo Toto (percussão) e Mario Siperman (teclados). A idade dessa turma variava entre 27 e 30 anos.
Quatro das canções de Rey Azúcar vêm aparecendo nos setlists da atual turnê da banda. Em 2023, estiveram na escalação do Coachella e pouco depois fizeram um show gratuito na Cidade do México para um público de mais de 300 mil pessoas. Em 2025, circulam entre cidades da Europa, dos EUA e da América Latina. O itinerário não inclui o Brasil, onde nunca se apresentaram…
Los Fabulosos Cadillacs é, na verdade, uma banda de duas vidas. A primeira fase vai de suas origens nos anos 1980 até 2002, com nove álbuns de estúdio. A segunda começa em 2008 e vem até a atualidade, agregando mais três álbuns. Rey Azúcar é um dos pontos altos de sua encarnação primeira.
Longo Caminho
Como aponta Herbert em seu artigo, “os Cadillacs são apenas uma das bandas latinas dessa geração [dos anos 80] que tinham ska e reggae como base de seu trabalho”. O grupo surgiu entre 1984 e 1985, junto a uma nova leva do underground bonaerense, fazendo companhia a Soda Stereo e Vírus.
Mas o som dos Cadillacs 57, como então se chamavam, era mais afim de bandas como Sumo, Los Twist, Casanovas e Sobrecarga. Madness, Specials, Selectors eram suas principais referências, inclusive na configuração da banda, com teclados, percussão e sopros, além do trio baixo-guitarra-bateria. Pelas mesmas razões, The Police e The Clash eram inspirações. Em uma das pontas, a new wave apontava os caminhos; na outra, estava a busca pelas raízes jamaicanas do reggae e do ska.
Com esse perfil, os Cadillacs passavam ao largo de artistas como Fito Paez e Charlie Garcia. Em vez da sonoridade fria e moderna de outras expressões dos anos 80, preferiam um som caliente e festivo, com acenos para o rock sessentista.
O álbum de estreia, Bares y Fondas (1986), já com o nome vertido para Los Fabulosos Cadillacs, não foi bem recebido pela crítica, o que não impediu que a Sony contratasse a banda. O sucessor, Yo Te Avisé!! (1987), aumentou as expectativas sobre os jovens argentinos.
A carreira da banda prosseguiu entre altos e baixos, assim como a economia de seu país, que voltara à democracia em 1983. El Ritmo Mundial (1988) marca a abertura para outras sonoridades, sinalizada pelo dueto com a cubano-americana Celia Cruz, a “rainha da salsa”, em “Vasos Vacíos”. Outro indicativo são as versões alatinadas para “Revolution Rock”, do Clash, e “Twist and Shout”, dos Beatles.
El Satánico Dr. Cadillac (1989) e Volumen 5 (1990) trazem covers para “A Message to You, Rudy”, dos Specials, e “Miss You”, dos Stones. Nesses álbuns, o estilo fica mais pop, com o leque se ampliando para o afro-funk (procurem por “El Satánico Dr. Cadillac”) e para levadas caribenhas (ouçam “Demasiada Presión”).
Em fins de 1991 é quando ingressam, no lugar de outros músicos, Fernando Albareda e Gerardo Toto. Antes disso, a banda lançou um EP com quatro faixas, remixes ou regravações de músicas antigas. A exceção era “Sopa de Caracol”, versão para uma cumbia do conjunto hondurenho Banda Blanca.
Gravado nos EUA, El Léon, de 1992, assume profundamente os ritmos caribenhos, a ponto de se sobreporem ao reggae e ao rock. Dessa vez, a versão é de uma música do panamenho Rubén Blades, célebre por sua salsa de letras engajadas. Talvez os rumos tomados pelos Cadillacs não tenham agradado seu público, que não se animou em aumentar as vendas do álbum. Para tirar o prejuízo, o passo seguinte foi literalmente matador.
Thievery Corporation?
Pressionados pela gravadora, os Cadillacs resolveram apostar alto. Concordaram em lançar um álbum com faixas retiradas dos anteriores, mas só se pudessem passar um período nos Estados Unidos para gravar novas músicas. A conexão “gringa” passava por duas pessoas: KC Porter, produtor de El Léon, e Tommy Cookman, que empresariava a banda em terras norteñas desde 1990. Porter se notabilizaria em trabalhos com Santana e Ricky Martin. Coockman estaria à frente da Latin Alternative Music Conference, cuja primeira edição ocorreu em 2000.
Em Los Angeles, com poucos dias de trabalho junto a KC Porter, os Cadillacs não apenas registraram duas novas músicas, mas regravaram cinco composições antigas. As duas novidades eram promissoras. “V Centenário” faz uma citação à “America” do musical West Side Story (1961) e descamba para um ska furioso, com sua letra contrapondo os festejos dos 500 anos de “descoberta” do continente à matança de povos indígenas.
“Matador”, a outra música, também tinha uma letra contundente. Narra a fuga do “matador de los 100 barrios porteños”, cujas armas são palavras de paz e de justiça. A parte musical é avassaladora, misturando rock a ska, ritmos afrocaribenhos e candombe uruguaio. A base percussiva, claramente reconhecível no início e mantida até o final, é, como nota Herbert em seu artigo, o samba-reggae.
O samba já tinha aparecido na faixa de abertura de El Léon. Ao menos Flavio, o compositor de “Matador”, conhecia de perto o Olodum por conta de uma viagem a Salvador em 1992. Talvez ele estivesse a par da parceria do bloco afro com Paul Simon em The Rhythm of the Saints (1990). Muito menos provável era que soubessem dos usos que a DeFalla e a Gangrena Gasosa já haviam feito do samba-reggae.
O uso do ritmo baiano gerou a acusação de plágio por parte de um locutor argentino. A banda respondeu com uma carta enviada pelo Olodum, que agradecia os Cadillacs por dar maior repercussão ao samba-reggae. Flavio despistou apontando outra influência, uma música do The Police…
Catimbas à parte, o fato é que a sonoridade dos Cadillacs havia se transformado em verdadeiro caldeirão de ingredientes muito bem condimentados. Às influências anteriores, haviam se juntado Mano Negra e Les Négresses Vertes, bandas francesas apreciadas pelos argentinos, seus primos mais velhos, e igualmente aficionadas por sonoridades de matriz africana.
“Matador” se tornou um super hit em 1994, constando até hoje em listas de melhores canções da música hispano-americana. O sucesso foi impulsionado pela MTV Latino, que veiculou à exaustão o bem produzido clipe de “Matador” em 21 países (menos o Chile, onde foi censurado). 1994 ainda teve o lançamento de um álbum ao vivo (registrado em Buenos Aires) e a realização de um Unplungged em Miami (o primeiro de uma banda latina).
No Caribe
Aposta ganha, Rey Azúcar colheu seus frutos. Cookman conseguiu convencer Chris Frantz e Tina Weymouth, ex-Talking Heads, a produzir o álbum. O local não foi menos memorável: o Compass Point Studios, construído por Chris Blackwell, fundador da Island Records, em Nassau, Bahamas. Chris e Tina conheciam bem o lugar por conta de gravações do Tom Tom Club na companhia dos míticos Sly Dunbar e Robbie Shakespeare.
Teve mais. Joe Strummer havia sido cogitado para produzir o álbum dos Cadillacs. Outro músico do Clash, Mick Jones, é que confirmou participação, gravando voz e guitarra para a faixa de abertura em um estúdio nos Estados Unidos. Já Debbie Harry, loiraça da Blondie, viajou para as Bahamas para contribuir em duas músicas.
Havia portanto razões de sobra para animar as três semanas de gravações das 16 faixas de Rey Azúcar em dezembro de 1994. As canções do álbum já vinham sendo compostas desde 1992, a maioria delas individualmente por Flavio, Vicentico e Sergio. Chris e Tina trabalharam separadamente com a seção rítmica e a de sopros. A pós-produção ocorreu em estúdios estadunidenses em janeiro de 1995.
O caldeirão cadillac mostra toda sua força na faixa de abertura, “Mal Bicho”, uma marcha que vai variando e crescendo com ritmos caribenhos, reggaeton e guitarras encorpadas. A letra assume tons políticos em nome de um oprimido difuso. Seu inimigo: “Mal bicho / Sos el que hace las guerras / dicta falsas condenas / el que ama la violência / que no tiene conciencia…”
O videoclipe, sob os cuidados de Pucho Mentasti, o mesmo que produzira o de “Matador”, faz uma junção de imagens transgressoras: cenas de tortura desconstruídas por sua encenação. Assim como em “Desapariciones” (de El Léon), a ditadura argentina é uma referência inevitável, mas ela vem acompanhada de frames com Hitler e Mussolini.
Outro destaque de Rey Azúcar é “Las Venas Abiertas de América”, cujo título cita o livro do uruguaio Eduardo Galeano, também fonte para o nome do álbum. A letra faz festa com a política: “ritmo caliente pueblo soberano / cenizas volando los vientos del sur”. No som, um Cadillacs mais roqueiro, parecendo um Red Hot Chili Peppers turbinado pela seção de metais.
A política volta a aparecer em outras letras, como a de “Ragga Punky Party Rebelde”, que cita Rubén Blanes e descamba para o punk. Talvez seja a faixa que mais se encaixa na descrição de Herbert Vianna para o som da banda: salsa-punk.
“Hora Cero”, um afro-funk que se desmancha em dub e riffs de guitarra, menciona o padre nicaraguense Ernesto Cardenal, dissidente sandinista ligado à Teologia da Libertação. “Paquito”, que vai do ska ao hardcore, se solidariza com um jovem que vive com AIDS. “Miami”, um reggae que se torna punk, lamenta: “no existe vida espiritual, en este infierno”.
A famosa “Strawberry Fields Forever” foi escolhida como cover da vez. Vicentico faz duo com Debbie Harry e o resultado é solar, sem nada perder da psicodelia original. O reggae volta a aparecer de ponta a ponta em “No Pienses que Fui Yo” (composição de Siperman) e em “Muerte Querida” (em estilo Clash).
O dub domina a cena em “Ciego de Amor” e “Queen from the Getto”, ambas evoluindo para tons mais pop. A segunda serve de palco para uma das três participações de Big Youth, DJ jamaicano na ativa desde os anos 70. São dele os versos: “With the people’s power / Talkin’ ‘bout Fabulosos Cadillacs musical power”.
Os ritmos caribenhos tomam a frente em “Reparito”, “Padre Nuestro” – cujas letras parecem orações – e “Estrella de Mar”. Nesta, Vicentico contribui tocando acordeão, que aparece também na cover dos Beatles. A percussão tem algo das murgas uruguaias. Sua letra é um exemplo da presença de temas românticos nas composições da banda.
Completam a lista de faixas de Rey Azúcar “Carmela” e “Saco Azul”. A primeira, composição de Ricciardi, é outra mostra do caldeirão cadillac, roqueira e latina na mesma medida. A segunda tem algo de grandioso, destoando do conjunto. Acelera freneticamente para acompanhar os versos de Valeria Bertuccelli, atriz então recém-casada com Vicentico.
A capa do álbum é outro tributo ao Caribe. Margeada pela foto de uma tatuagem com as iniciais da banda figura uma reprodução da obra de um artista haitiano, Rara Kuyu. Ela retrata Gede, uma divindade do vodu, descrita assim no encarte: “guardião de todo o conhecimento dos mortos, controla a passagem entre a vida e a morte, energia da vida da alma…”
Vida e Morte
Após Rey Azúcar, o circuito pelo qual transitavam Los Fabulos Cadillacs se ampliou. Em setembro de 1995, apresentaram-se em Nova York, quando gravaram o clipe para “Strawberry Fields Forever” ao lado de Debbie Harry. Em casa, um registro capta a energia da banda nos palcos, com um repertório que incluía uma versão para “Guns of Brixton”, do Clash.
Em 1996, participam de um tributo a essa banda tão idolatrada (Buenos Aires City Rockers, lançado no ano seguinte). Outra versão, dessa vez para “What’s New Pussycat?”, de Tom Jones, é produzida em dueto com a banda de ska estadunidense Fishbone. Os Cadillacs puderam ser vistos em um festival na Suíça (quando tocaram na mesma noite do RHCP), em um show em Porto Rico e dividindo o palco com Café Tacvba em Los Angeles.
Por outro lado, houve sinais que apontavam para a dissolução da banda, algo que ocorreria em 2002. Vaino Rigozzi deixou o grupo ainda em 1996. Em 1997, foi a vez de Sergio Rotman, o que desfalcou o trio de compositores. Flavio já dividia suas energias com a administração de um selo (Resiste Records, criado em 1996) e Vicentico começaria uma carreira solo logo após o fim da banda.
Antes de terminarem, lançaram ainda mais dois álbuns com faixas inéditas, novamente sob a produção de KC Porter. Fabulosos Calavera (1997) é mais experimental, usando as referências da banda, acrescentadas de jazz, para fazer fusões e passagens em cada uma das músicas. La Marcha del Golazo Solitario (1999) parece ter duas metades: na primeira, retoma o estilo de El Léon; na outra, soa como uma versão latina de Sgt Peppers.
Nunca haverá consenso em apontar Los Fabulosos Cadillacs como “a maior banda latino-americana”. Mas é justo reconhecer que foram capazes de canalizar (inclusive no sentido espiritual) um amplo escopo de ritmos de nosso continente, passando inclusive pelo Brasil. São um elemento incontornável do jogo que, nos anos 90, levou o rock a se aventurar pela busca de raízes locais. No seu caso, isso os tornou maiores do que a Argentina.

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).