Lady Gaga faz história no Rio de Janeiro
Há exatamente um ano eu escrevia um texto exaltando a apresentação da Celebration Tour, de Madonna, na mesma Praia de Copacabana. O que parecia um marco imbatível ganhou uma concorrência fortíssima com o show que Lady Gaga acaba de apresentar. Por mais que tal afirmativa nos force a comparar as trajetórias das duas, a intenção aqui não é essa, mas exaltar a perfeição técnica e a total sintonia de Gaga com seu público. Até porque não dá pra fazer tal comparação sem incorrer num erro simplista de colocar ambas, que são artistas de épocas diferentes, sob o mesmo crivo. O que Madonna fez nos anos 1980 e 1990 e, com intensidade decrescente, no século 21 está na história. E certamente alimentou, inspirou e moldou a carreira de Gaga, nascida em 1985, quando “Like A Virgin” estava nas paradas de sucesso globais. Sendo assim, prefiro ver ambas como pertencentes a um gênero do pop rock que tem outros artistas igualmente célebres: David Bowie, Elton John, Queen, Grace Jones, Blondie, Chic e até os Rolling Stones, ou seja, gente que aproveita/aproveitou o palco para ir além da música e, com isso, atingir mais e mais pessoas. Gaga é isso, é a mais recente encarnação desta linhagem, que, como marca registrada, não abre mão da música. E isto ganha o jogo.
No caso de Stefanie Germanotta, a própria Gaga, há outros dois fatores em jogo. O primeiro é o perfeccionismo que ela parece ter. Seu show é absolutamente pensado, marcado, projetado, extrapolado, revisto, repensado e mil vezes ensaiado. Só assim é possível imaginar uma profusão de figurinos, danças, pirotecnias, elementos cênicos em ação simultânea, todos absolutamente necessários como complementos e justificativas para as canções. Após ver uma apresentação como esta, não há como imaginá-la de outro jeito e, se, por acaso, isso acontecesse, certamente seria uma experiência menos interessante. O show que Gaga ofereceu na Praia de Copacabana provavelmente é a sua melhor versão, algo que já deve ter tido todas suas possibilidades testadas e otimizadas para gerar este resultado. Dá pra dizer que se trata de algo muito próximo da perfeição. E o outro fator em jogo é a absoluta sinergia com seu público. Em momentos como este, no qual ela está diante de uma plateia que pode ter chegado aos dois milhões, esta é a grande diferença.
E por quê? Porque os “Little Monsters”, fãs dedicados da cantora, vivem uma relação de comunidade entre si e com ela. As letras das músicas, as declarações de Gaga, as aparições públicas, as performances na telona, telinha e no palco, tudo está entrelaçado e unificado pela ideia central de aceitação própria. Parece balela coach (e talvez tenha um tanto disso na mensagem) mas a vida pessoal da artista parece ser norteada por uma luta pessoal em que a dúvida sobre sua capacidade em vários campos deu a tônica. E ela, ao contrário de mascarar ou evitar o assunto, usou como uma forma de superar os problemas e adicionar uma camada de positividade em sua obra. A mensagem tornou-se poderosa demais para ser ignorada e calou fundo no público LGBTQIA+, vítima de uma sociedade limitadora, emburrecida, religiosa em excesso e que o vê como um coletivo de párias. Com suas canções, Gaga ultrapassa todos esses muros e oferece um lugar em seu exército de monstrinhos, algo que seus fãs aceitam sem pensar duas vezes. Foi comovente ver como essas pessoas responderam à performance dela ao longo do show.
Por fim, nada disso seria tão bacana e emocionante se não houvesse um alicerce sonoro suficientemente forte. E há. Eu, que nunca fui ligado na obra de Gaga, tive que tirar o chapéu para a lista de várias canções que eu já tinha ouvido aqui e ali e não dera o devido valor. Coisas como “Alejandro”, “Papparazzi”, “Bad Romance”, todas cantadas em uníssono pelo público. Canções ainda mais legais se revelaram no show, que, dividido em cinco atos, trouxe, ao todo, vinte e uma músicas. O momento em que ela entrelaça “Killah e Zombieboy”, duas faixas de seu último álbum, “Mayhem”, me pareceu excelente. A balada “Die With A Smile”, que ela canta com Bruno Mars, surgiu em uma menção rápida, mas seu brilho à la Motown anos 1980 marcou o momento. E “How Bad Do U Want Me”, outra de “Mayhem”, também tem uma pegada daquela década, dessa vez com mais pinta de Madonna. Tudo bem, teve a soporífera “Shallow”, que eu só conseguia ouvir na infame versão de Paula Fernandes, “Juntos e Shallow Now”, mas não chegou a arranhar a lindeza de tudo. E o último detalhe, que faz esta apresentação de Gaga ser tão superior: uma banda – boa – tocando ao vivo, com destaque para o baterista Tosh Peterson e o guitarrista Tim Stewart, que já tocou com o Infectious Grooves.
Que estes primeiros dias de maio se consolidem como datas em que o Rio de Janeiro (e o Brasil) recebe shows gratuitos em sintonia com o que está acontecendo lá fora. Que não precisemos viver como reféns dos festivais que têm programações pra lá de duvidosas, preços caríssimos e sentenciam o público a “viver uma experiência” numa praça de alimentação ao ar livre.
Setlist
“Bloody Mary”
“Abracadabra”
“Judas”
“Scheiße”
“Garden of Eden”
“Poker Face”
“Perfect Celebrity”
“Disease”
“Paparazzi”
“Alejandro”
“The Beast”
“Killah”
“Zombieboy”
“Die With a Smile”
“How Bad Do U Want Me”
“Shadow of a Man”
“Born This Way”
“Blade Of Grass”
“Shallow”
“Vanish Into You”
“Bad Romance”

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.