Disstantes destrincha a nossa distopia cotidiana
Disstantes – Cybertrópico
47′, 16 faixas
(Independente/Tratore)

Dizer que este segundo trabalho do Disstantes é uma porrada significa ser reducionista. Ele é muito mais que isso. Trata-se de um disco que consegue fazer traduções de várias situações cotidianas e relacioná-las com a nossa miséria material e espiritual vigente. É como destrinchar várias camadas e nuances da distopia que marca esses primeiros anos do nosso século e ousar falar verdades que precisam ser ditas há muito tempo. Gilber T, Marco Homobono e o DJ Feres conseguiram ampliar o espectro sonoro – que já era caleidoscópico – na estreia, com o primeiro disco, “Apocalipto” (2022). O que já era um trem da Supervia partindo da Central rumo a uma estação não apontada no mapa, agora se transformou num voo de drone, helicóptero, reiki ou asa delta turbinada sobre os escombros de metrópoles e promessas de futuro não-realizado. É uma gigantesca betoneira em que são arremessados nacos de ragga, tascos de reggae, lembranças de hardcore, pedregulhos de rock, tijolos de punk e muita eletrônica contrabandeada, gambiarrada, improvisada, surgida da necessidade e da ousadia. E, em meio a esse bololô sonoro de samplers inesperados e curto-circuitos não planejados, surge a poética (sub)urbana, geopolítica, existencial, em-pé-no-busão/trem/barca de Homobono, que se confirma como um dos mais agudos e inteligentes cronistas do nosso cotidiano implacável. Bem-vindos a “Cybertrópico”, o segundo disco do Disstantes.
Com essa estrutura enxuta, os três disstantes precisam assoviar, chupar cana, bater corner e cabecear, tudo ao mesmo tempo. Gilber T, que também integra os Seletores de Frequência e já tocou e produziu um monte de gente, além de ter gravado uma pequena obra prima do rap nacional, “Alameda Boaventura”, dá conta de samplers, baterias eletrônicas, teclados, além de baixo, cítara e viola. Homobono, que faz parte de uma das mais legais bandas cariocas dos últimos tempos, os Djangos, acrescenta guitarra, vocais, beatbox e esta poesia marginal/classe média-baixa que mapeia as realidades testemunhadas ao longo do dia. E o DJ Feres também responde por parte do arsenal eletrônico de contrainformação, com samplers, baixo sintetizado e tudo mais. A produção é de Gilber T, que também mixou o álbum, que contou com a masterização de Seu Cris. É sempre bom detalhar os créditos de um disco como “Cybertrópico”, porque, é visível – e audível – o espírito comunitário e as dificuldades de todos os tipos que essa galera enfrenta para colocar um trabalho como esse nas ruas. Além dos custos financeiros, tem o esforço, digamos, logístico, na coisa toda, especialmente porque os três moram bem longe um do outro, algo que é tão marcante a ponto de batizar o próprio grupo.
Como já dissemos lá em cima, “Cybertrópico” é o resultado de gestação numa verdadeira incubadora de influências. Se pegarmos as origens sonoras de Gilbert e Homobono, veremos que eles estão desde os anos 1990 nesta militância sonora alternativa. E naquela época já era possível ver que o centro inspiracional dos caras estava na encruzilhada reggae-ragga-hardcore com derivações pelo ska, pelo hip hop e pela música eletrônica. Com o tempo, aprenderam a acrescentar elementos que iam além desses estilos, do mesmo jeito que bandas como Mano Negra e Asian Dub Foundation fizeram e se justificaram. O Disstantes, mesmo tanto tempo depois desse início, tem sua fundação nessa mistureba sonora que amalgama tons, estilos e vivências, de um jeito bem cru e verdadeiro. O que ouvimos, dadas as circunstâncias de produção, composição e gravação, é ainda mais conectado com essa realidade, que, diria eu, potencializa ainda mais a experiência de ouvir essas canções. É quase como se os três conseguissem extrapolar a circunstância de ouvir um disco remotamente – via streaming, fones de ouvido e tal – e se transportar para outras cenas, como uma conversa de bar, com amigos, sobre o que todos temos visto e sentido por esses dias.
A leva de novas canções é muito bacana. Há vários momentos brilhantes em meio às dezesseis faixas de “Cybertrópico” e, logo de cara, já topamos com a aerodinâmica “Latino”, na qual Homobono já vai colocando as cartas na mesa com o verso “Peguei um ônibus na Trans-muambeira, Ciudad Del Leste é igual a Madureira”, ligando os pontos do desenho. Em “Fator 100”, a coisa já vai mais para o Miami Bass estilizado e misturado com várias coisas ao mesmo tempo. Com “CDD x SG”, a própria gênese da distância (ou disstância?) que separa/une os integrantes da banda é exposta em uma narrativa hip-hopesca que parece a leitura do noticiário policial do Errejota. “Hostil” é o adjetivo mais adequado a vários lugares do Rio e o Disstantes vai de sample, vocalizações barra pesada na narração e o canto de Homobono surgindo com ares de reparação histórica “Foi sua gente que me exterminou//Me açoitaram na praça//Eu dei de graça todo o meu valor//E hoje eu sou ameaça//A banca sabe quem me sabotou”. “Freak Jazz” mergulha no híbrido dançante, piseiro, eletrônico minimalista, lembrando um Asian Dub Foundation reimaginado, enquanto “Transgrida com Educação” lembra algo que o Djangos poderia ter feito. Dá pra notar a métrica homobônica na letra e o jeito de cantar. “Adaptado” é a palavra de ordem para os tempos atuais e aqui, sob a ótica do Disstantes, vem como canção explosiva meio funk, meio hip hop, meio tudo ao mesmo tempo. E a grande presença musical deste disco, “De Noite Poeta de Dia Operário”, é o ponto altíssimo, que traduz uma realidade que achata – mas não quebra – uma considerável parcela da população brasileira que ousa furar o sistema, acordar da Matrix, algo assim.
“Cybertrópico” é um caleidoscópio pintado com cores cruéis e verdadeiras. Também é um disco de alto teor narrativo, cheio de luta, resistência e necessária petulância contra a lógica que nos achata todo dia. É encorajador e deve ser conhecido pelo maior número de pessoas. Brilhante.
Ouça primeiro: “Latino”, “Fator 100”, “CDD x SG”, “Hostil”, “Freak Jazz”, “Transgrida com Educação”, “Adaptado”, “De Noite Poeta de Dia Operário”.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.