Nunca o rock foi tão chileno: Los Tres em 1995
Para começar, Los Tres são quatro. Álvaro Henríquez, Roberto “Titae” Lindl e Francisco (Pancho) Molina formaram o núcleo inicial quando começaram a tocar juntos ainda na primeira metade dos anos 80 na cidade de Concepción. Ángel Parra se juntou ao trio em 1990, um ano antes do lançamento do primeiro álbum.
Na década de 1980, o Chile viveu um boom do rock local, puxado pelo sucesso de artistas argentinos. Eram ainda os tempos da ditadura de Pinochet. A banda de maior destaque foi Los Prisoneros, cujas letras ousavam tratar de temas políticos.
Após um arrefecimento, o rock voltou a atrair muita atenção em meados da década seguinte, com a democracia já restabelecida. Em 1995, por exemplo, foram lançados 18 LPs de estreantes. O problema era que as bandas chilenas tinham que concorrer com artistas da Argentina, do México e da Espanha. Nesse cenário, algumas se destacam, como La Ley e Los Tres.
As referências que percorreram a formação musical dos quatro integrantes da banca penquista eram variadas. Álvaro era um fã dos Beatles e aprendeu a tocar guitarra com a música que os alimentou: rock’n’roll, blues, country. Titae estudou violão clássico, flauta e piano. Com o pai como músico de orquestra, passou um ano e meio estudando em conservatório na Áustria e tocando contrabaixo em trios de jazz.
Jazz também corria nas veias do baterista Pancho, o que o levou aos Estados Unidos no início da década de 90. Mas com muito apreço pelo rock. Nos anos 80, em Concepción, todos curtiam The Cure, The Smiths e The Police. Quando Ángel cruza o caminho do trio no momento em que já frequentava o circuito artístico de Santiago, Los Tres eram conhecidos como uma banda de rockabilly tipo Stray Cats.
Ao contrário dos demais, Ángel era da capital e tinha um sobrenome conhecido em todo o país. Era nada menos do que neto de Violeta Parra, uma das matriarcas da Nova Canção Chilena, uma espécie de homólogo do que é a MPB no Brasil. Nos anos 80, Ángel vai se firmando como um guitarrista de jazz fusion.
Como se percebe, os músicos de Los Tres tinham formações sólidas. No entanto, as composições ficaram sempre nas mãos de Álvaro e de Titae, o que está na raiz de tensões que levariam ao fim (provisório) da banda em 2000. Já nos anos 90 Ángel e Pancho mantiveram projetos musicais paralelos.
O primeiro álbum (Los Tres, 1991) foi lançado pela Alerce, uma gravadora chilena associada com a Nova Canção Chilena, e reúne músicas que expressam as variadas referências da banda. O segundo (Se Remata El Siglo, 1993) já ocorre no âmbito do contrato com a Sony e é mais roqueiro, com influências que iam de AC/DC a Faith No More.
Para a produção, a Sony havia destacado o argentino Mario Breuer. Seu currículo listava trabalhos com Charly García, Luis Alberto Spinetta, Sumo, Redonditos de Ricota, Fito Páez e Andrés Calamaro. No Chile, acompanhara La Ley em Doble opuesto (1991).
A parceria com Breuer não foi tranquila, mas isso não impediu que fosse repetida para o terceiro álbum. La Espada y La Pared foi gravado na primavera de 1994 em três estúdios, um no Chile (Master) e dois na Argentina (El Pie e La Diosa Salvaje). As bases foram feitas com todos tocando juntos. Entre os instrumentos que foram acrescentados depois, há o órgão tocado por Álvaro e o bandolim e o acordeom por músicos convidados.
A banda voltou a reclamar da relação com Breuer, inclusive nas partes que envolveram a mixagem (nos Estados Unidos) e a masterização (na Argentina). Apesar disso, logo depois de ter sido lançado, em março de 1995, o álbum foi um sucesso e deu sequência à trajetória ascendente de Los Tres.
As treze faixas de La Espara y La Pared
O álbum abre com “Déjate Caer”, que corresponde a algo que o produtor descreve como uma sonoridade acústica sem ser suave, com personalidade. A letra parece uma canção de despedida e compõe-se de jogos de palavras, ironias cruéis e imagens surreais que abundam nas composições de Álvaro: “A terra se abre / o céu está a meus pés”.
O videoclipe de Germán Bobe investe em referências barrocas, em diálogo com os dedilhados rebuscados de Ángel na música. Segue também a estética da capa do álbum, onde figura o retrato de uma menina pintado no século XIX por um artista russo. Álvaro é um morto que volta para consolar seus conhecidos. As cenas finais se passam em uma igreja.
Também foi em uma capela que ocorreu o lançamento oficial do álbum. Embora os temas religiosos não sejam importantes nas letras, o videoclipe incomodou as sensibilidades dominantes: um canal de TV se recusou a veiculá-lo.
O acústico volta a predominar em “Te Desheredo”, mas com um longo final psicodélico. A letra trata de um rompimento amoroso: “Não quero falar demais / da verdade / que me fez mentir”. O mesmo é o caso em “Me Rompio el Corazón”, uma balada cheia de lirismo, reforçado por um bandolim. Ela contrasta com a única faixa instrumental, “V & V”, de uma placidez pintada com toques marítimos.
Outra balada é “Moizefala”, essa com mais energia, beirando um soul. O refrão vem com uma melodia forte. A letra é puro desalento, nem cartas de amor podem desfazê-lo. Mas sua origem contrapõe-se a esse desânimo, como parte da trilha sonora de um divertido curta metragem inspirado em uma glamorosa transexual do Chile dos anos 80.
A faixa título do álbum mostra as raízes rockabilly de Los Tres. Continuam os jogos de palavras (“Morto vivo melhor”) em uma letra que trata de relações casuais (“sexo sem olhar”) e o que elas não evitam (ficar “entre a cruz e a espada”). O rockabilly é entremeado por uma parte acústica, acompanhada de acordeom, que volta ao final e é destacada para se tornar outra faixa, “La Espada”.
“Tírate” tem algo de bolero em seu andamento, mas com os dois pés bem fincados no rock. Na letra, alguém perde a paciência diante da ameaça de abandono: “Sei que não farás / Teu solilóquio pode mais / E sei que não dirás / palavras de verdade”. “Hojas de Té” é um rock blueseiro, com Ángel mostrando o que sabe fazer com um slide. Drogas e tédio preenchem a composição.
“Dos en Uno” tem uma levada groovy, contando a história de um amor literalmente canibal, cujo ápice é devidamente acompanhado pela sonoridade explosiva. “Agora vives em mim / e eu vivo, vivo de ti”. Ainda mais groovy é “Partir de Cero”, ao ponto de poder ser considerada um funk. Diante de tantas coisas que podem destroçar uma vida, melhor é se sentir feliz – ironiza a letra.
O álbum encerra com uma versão para “All Tomorrow’s Parties”, incluída no álbum de estreia da Velvet Underground (1967), insistindo em sua psicodelia. Ela é precedida pela música mais pesada do repertório, “Tu Cariño Se Me Va”, um rockaço pós-punk, com uma letra de lamentação por um amor perdido.
La Espada Y La Pared é um álbum de rock, mas, como se vê, atravessado por outros gêneros – algo que não o distinguiria de tantas outras produções. Mas ao escutá-lo, sua sonoridade nos faz procurar por algo mais específico. A resposta está nas conexões de Los Tres com a música chilena.
Rock e música tradicional
A relação da banda com outras vertentes da música chilena não passa apenas por Ángel. Quando se mudou para Santiago, no final dos anos 80, Álvaro integrou-se a uma produção teatral, La Negra Ester, um grande sucesso de público. A peça era baseada em um texto de Roberto Parra (irmão de Violeta), que acompanhou parte das turnês. Álvaro estava entre os músicos da produção, embalada por boleros, tangos e jazz guachaca.
Jazz guachaca foi a invenção de Roberto Parra para nomear, nas palavras de Fabio Salas Zuñiga, “sua versão achilenada do foxtrot americano”. Ao mesmo tempo, era a releitura de um gênero tradicional da música popular chilena, a cueca. No início dos anos 70, em registros tendo ao seu lado o sobrinho Ángel (o pai do guitarrista de Los Tres), Roberto contribuiu para compor o que ficou conhecido como cuecas urbanas ou cuecas choras. Diferente das cuecas tradicionais, marcadas pelo ambiente rural, as novas cuecas eram festivas e tratavam de temas ligados ao comércio de álcool e sexo.
Durante a turnê de La Negra Ester, Álvaro constituiu uma amizade com Tío Roberto que teria consequências para sua formação musical. Isso não aparece diretamente em La Espada Y La Pared, que prefere explorar outra vertente da história da música chilena. É a chamada Nueva Ola, grupo de músicos e intérpretes que, desde fins dos anos 1950, produziram sob a influência do rock and roll estadunidense e da cultura pop europeia.
“Tu Cariño Se Me Va”, na verdade, é uma versão do sucesso de um dos artistas da Nueva Ola chilena. Ricardo Toro assumiu o nome de Buddy Richard e em 1965 gravou a música que foi retomada por Los Tres, com a participação de Richard nos vocais. A homenagem pretendia expressar o apreço da banda por uma sonoridade popular, em contraponto a algo “super brilhante, produzido”.
La Espada Y La Pared, portanto, é esse álbum que consegue colocar, literalmente lado a lado, versões de Buddy Richard e de Velvet Underground. Na avaliação de María de los Ángeles Cerda, a banda conseguiu, naquele momento, elaborar uma estética capaz de combinar a moderna noite santiaguina com referências religiosas tradicionais.
Seis meses depois do lançamento de La Espada Y La Pared, Los Tres estavam em Miami para gravar o Unplugged MTV, que sairia em álbum em 1996, com grande sucesso. Levaram a proposta ao pé de letra, sem utilizar nenhum instrumento elétrico. Estavam acompanhados de Antonio Restucci e Cuti Aste, que já haviam colaborado nas gravações de 1994. As bases do repertório foram o primeiro e o terceiro álbuns. Entre as 15 músicas, há três cuecas de Roberto Parra.
Em 1996 e 1997, a banda promoveu duas temporadas em formato de fondas, como são conhecidos eventos populares festivos no Chile. Sob uma tenda, várias atrações se sucediam: músicos iniciavam com tangos e boleros; Los Tres faziam uma apresentação folclórica com convidados; continuavam no palco fazendo seu show de rock; ao final, Pancho comandava um grupo de amigos que tocavam cumbias.
Em 1998, é lançado Peineta, um álbum que junta dois registros. Um de 1994, com Los Tres acompanhados por Roberto Parra em um teatro de Santiago. A outra gravação ocorreu no ano do lançamento, em um estúdio, na companhia de Lalo Parra, irmão de Roberto e também compositor de cuecas choras. “La Negrita” faz pensar em uma cueca rockabilly.
Pode-se discutir a natureza dessa aproximação do rock com um gênero tradicional, mas isso não anula três coisas: 1) a partilha de referências com a música negra norte-americana; 2) a atração pela música tradicional despertada em jovens roqueiros; 3) a elaboração de uma crítica ao nacionalismo oficial, que elegera a cueca como trilha sonora e gênero dançante das “festas pátrias”.
Cinco anos antes do fim
La Espada Y La Pared foi um sucesso. Em pouco tempo, rendeu para a banda disco de ouro e disco de platina. Conquistou vários títulos na Premiácion Anual a La Musica Chilena. Levou Los Tres ao principal festival do país, em Viña del Mar.
A Sony animou-se com os resultados. Além de bancar o Unplugged, fechou contrato para mais quatro álbuns e anunciou que a banda lançaria duas músicas em inglês. Isso não aconteceu, mas os planos para uma projeção internacional foram mantidos.
O principal alvo foi o México, onde a banda excursionou várias vezes. Contudo, sem a repercussão esperada. Isso não impediu que deles se tornassem fã a Café Tacvba – banda aliás bem conhecida no Chile – que em 2002 gravou um EP com quatro versões de músicas de Los Tres, incluindo “Déjate caer” y “Tírate”.
Los Tres lançariam ainda mais dois LPs – o ótimo Fome (1997) e La Sangre en El Cuerpo (1999) – antes de se separarem. Mas Álvaro, Titae e Ángel voltariam à ativa para gravar outros dois álbuns de estúdio com o nome da banda. Em 2023, o quarteto original anunciou o retorno para concertos no Chile e além.
Seria ótimo se viessem ao Brasil. Isso só ocorreu uma vez, em 2013, quando fizeram um show em São Paulo para 50 pagantes. Uma banda que emplacou o décimo lugar na lista dos 50 melhores álbuns chilenos segundo a revista Rolling Stone (2008) merece mais. Ali figura com La Espada Y La Pared.
Se fosse preciso apresentar o álbum para um público roqueiro no Brasil, arriscaria dizer que tem algo de Legião (fase Dois), algo de Engenheiros (da época Revolta dos Dândis) e algo de Picassos Falsos (em seu Supercarioca). Tudo isso sem deixar de estar em sintonia com a busca de raízes que também vivemos por aqui nos anos 90.

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).